domingo, 8 de março de 2015

Vagina e patriarcado

Este texto está incompleto em muitos sentidos, uma vez que o material de consulta não está comigo - está emprestado. Então eu sei que ele vai incorrer em diversas imprecisões, e por isso quem puder contribuir corrigindo, dando uns toques, pode se sentir à vontade nos comentários.

Este é um texto sobre a vagina no patriarcado. Ele é um texto sobre a apropriação da vagina por aquilo que tem sido chamado de Patriarcado, ou de Ocidente, mas também de Capitalismo. É uma história do olhar masculino, assentado em instituições científicas e religiosas, bem como uma história de resistência das mulheres que sobreviveram e ainda sobrevivem. O recorte temporal escolhido parte da Grécia antiga, mais precisamente de Aristóteles, por dois motivos principais. O primeiro: para mim, nem as teorias de Engels/Morgan, nem a obra de Gerda Lerner, esgotam minhas dúvidas sobre o surgimento do patriarcado; são duas teorias que tomam a heterossexualidade tal como a conhecemos como uma evidência história estável e pouco questionada. Em segundo lugar, Aristóteles é um marco ocidental não só para o pensamento masculino sobre as mulheres, como também da arte, da linguagem, entre muitos outros assuntos. Assim, ele me parece um bom marcador de "pensamento ocidental/patriarcal como o conhecemos".

Aristóteles afixa um modelo de interpretação dos genitais que por muito tempo se torna um paradigma do conhecimento patriarcal, apelidado de "modelo unissexual". Para Aristóteles, o masculino e o feminino não são naturezas radicalmente diferentes, mas apenas uma natureza, que incidentalmente se desenvolve de uma maneira ou de outra. O pênis e a vagina seriam o mesmo órgão; um voltado para dentro, outro voltado para fora. A fêmea seria o macho incompleto e defeituoso; a vagina, vista como "invaginação do pênis", passa a ser uma metonímia pela qual a mulehr é entendida como "o homem ao contrário". Se o homem é razão, luz, progresso, ordem, a mulher é loucura (histeria), escuridão, retrocesso, desordem. Seguindo o pensamento de Platão, a racionalidade é marcada pela constância, pela capacidade de um indivíduo em ser igual a si mesmo em diferentes momentos da vida; o ciclo feminino, com suas oscilações, era portanto o marcador de um corpo inapto ao pensamento racional por excelência.

O paradigma cristão, embora tenha incrementado essa visão dos corpos, não operou uma mudança significativa no modelo aristotélico de interpretação. As dores do parto e da menstruação, dadas a Eva como punição pelo incidente da maçã, recaíam sobre a mulher não por sua anatomia, mas pela punição história ao gênero feminino. Os cristãos continuaram estudando o corpo feminino pelo prisma quebrado de sua própria moralidade, e na busca de entender os desígnios de deus sobre a mulher, faziam-no a partir do contraste aparente entre o corpo feminino e o masculino. Se as mulheres eram "mais moles", menores, e de ossos arredondados, pensava-se que a "fragilidade" de sua anatomia atestava o destino de ser governada pelo homem - tal como diziam as escrituras.

Ao passo que se "produzia conhecimento" sobre o corpo feminino, a verdade é que as mulheres dispunham de um vasto conhecimento sobre si próprias. Esse conhecimento, até a unificação dos estados nacionais, era restrito às elites econômicas, enquanto mulheres camponesas ou profissionais liberais assentadas nas cidades dispunham de conhecimentos milenares sobre alimentação, ervas e chás, parto, gestação, menopausa... Silvia Federici, em Caliban and the Witch, sublinha a importância da caça às bruxas para a unificação dos Estados Patriarcais. Para a autora, a necessidade de uma demografia controlada voltada para o trabalho, de um Estado na gerência plena das funções econômicas, requeria um controle mais preciso do corpo feminino, sendo este uma "peça" fundamental da reprodução da mão-de-obra. Ao contrário do que está consagrado no imaginário popular, a "caça às bruxas", que tem de fato suas raízes no catolicismo, é um advento altamente Moderno, que rapidamente foi adotado e encorajado pelos Estados, e segundo Laura de Mello e Souza, foi muito mais ardente entre as recém surgidas igrejas protestantes.

Mary Del Priore, em "Magia e colônia: o corpo feminino", afirma que nas colônias esse paradigma era ainda mais frouxo. Havia grande escassez de médicos enviados pela coroa, e a Igreja fazia "vista grossa" às curandeiras e parteiras, vistas como um "risco menor" à empresa colonial. Enquanto isso, em Portugal, as escolas de medicina eram largamente tuteladas pela Igreja, sendo expoentes do pensamento escolástico. Tal pensamento, concebendo a mulher apenas como veículo da reprodução do Homem, tinha grande interesse em compreender o funcionamento do aparelho reprodutor feminino, mais especificamente do útero ou madre; mais uma vez, o aparelho reprodutor é metonímia do corpo e da alma; uma mulher que não se engajasse na reprodução estaria sujeita à melancolia, à ninfomania. A menstruação era concebida como o descarte do excesso de sangue na mulher. Os vapores exalados pelo sangue menstrual eram vistos como tóxicos, e provocadores de alucinações. Assim, a "cura" era o homem: a mulher deveria estar permanentemente grávida, segundo o papel que lhe reservara o Bom Deus, evitando os males da ninfomania, do útero errante, da melancolia, entre outros.

Com o advento do microscópio, a medicina patriarcal descobre que os testículos femininos produzem um tipo de organismo (sic) diferente dos testículos masculinos, donde o modelo unissexual entra em declínio. Porém, uma vez a serviço do patriarcado, isso não foi suficiente para que o corpo feminino, em especial o aparelho reprodutor, passasse a ser estudado com o devido respeito ou cuidado, e muito menos serviu para que conhecimentos tradicionais pagãos, ou no caso colonial conhecimentos indígenas e oriundos de África, fossem resgatados como fonte de consulta e conhecimento. Pelo contrário, o modelo bi-sexual inaugura uma era de fêmeas perigosas e desconhecidas: uma vez que o conhecimento produzido até então era inaproveitável, a mulher passava a ser uma natureza completamente nova, continente desconhecido, que se por um lado é detentora de uma sexualidade que não diz respeito apenas à reprodução, tem de ser controlada sob o risco de arruinar toda a ordem-e-progresso da sociedade burguesa que procurava se estruturar.

Essa troca de modelos de interpretação, é claro, não foi radical nem instantânea, de modo que pensadores como Rousseau, Diderot e Freud ainda persistiam no paradigma que viera anteriormente. Especialmente Freud persiste no modelo unissexual, e é altamente cristão ao afirmar que a inveja é característica fulcral da mulher. Não só isso: quando, no complexo de Édipo, a menina olha para o pênis do pai e conclui que foi castrada, imputa-se à menina a noção de um dia já ter sido um homem que foi, a posteriori, deformado ou modificado. A hipótese hidráulica do desejo, de que a repressão deste estaria no bojo da histeria, apenas faz deslocar a causa da loucura do sangue menstrual para o orgasmo (ou falta dele), mas de maneira geral, o pensamento freudiano preserva suas bases cristãs e aristotélicas.

Agora vamos falar um pouco da nossa amiga, da nossa ppk, da nossa vagina. A vagina não é um pênis ao contrário. as escolas insistem em desenhar no quadro negro (atualmente branco) uma vagina em forma de cenoura, como se fosse uma cavidade oca pronta a receber o pênis, ou mesmo como se já estivesse virtualmente penetrada. ERRADO. A vagina não é cavidade, é um canal. Como outros canais do corpo, ela é um canal virtual; quando não tem "nada" lá dentro, ela está fechadinha, suas paredes se encostam. por falar em paredes, a vagina é feita de muitos tecidos, incluindo tecidos musculares, que podem ser exercitador para que o tônus muscular se mantenha ao longo da vida. Ela tem uma lubrificação que lhe é própria, e que costuma estar em perfeita sintonia com o nosso desejo. Isso derruba a hipótese de que o corpo feminino seja um corpo cuja sexualidade gira em redor APENAS da reprodução; não basta estar fértil para ter tesão, e muito menos ovulação implica ter atração sexual por homens. Voltando à parte de "não haver nada lá dentro": ERRADO. A vagina tem o que chamamos de flora vaginal, bactérias que lhe são próprias e que não são sujeira. Pelo contrário, estão ali para manter tudo em ordem. Inclusive, se você já tomou algum antibiótico muito forte, pode ter sentido coceira na vagina, ou mesmo pode ter tido alguma secreção diferente do normal. Isso acontece porque, quando essa flora se desequilibra, pode ocorrer candidíase, cujo sintoma mais comum e aparente é o prurido, ou coceira. O útero, por sua vez,não é uma bolsa escrotal virada ao contrário. Ele tem paredes grossas, que também têm músculos, e que se incham de sangue para que a placenta possa se implantar e alimentar o bebê. Os ovários não são testículos, e as trompas não são canais deferentes (ou seja lá o que tem de supostamente análogo na anatomia masculina, desculpa mas não vou fica lendo sobre pinto, não sou obrigada).

No Patriarcado (ou ocidente, como algumas preferem) o controle das mulheres enquanto recurso na reprodução humana (que passa pela execução de trabalhos e tarefas que à primeira vista podem não se relacionar com reprodução) passa pela apropriação de seus órgãos genitais e reprodutores como um recurso à disposição dos homens e do Estado. Essa apropriação se dá, fisicamente, pelo terror generalizado ao estupro, que limita nossa mobilidade; pela apropriação médica do conhecimento sobre o nosso corpo, na medida em que, para nos conhecermos e tratarmos, temos de nos alienar na mão de um profissional que não necessariamente é mulher; pela apropriação estatal que nos impede de abortar. A alienação em relação ao conhecimento é fundamental na nossa dominação, e a imagem da vagina como "suja e fétida" faz parte dessa alienação, na medida em que, principalmente as mulheres heterossexuais, se vêem impelidas a terceirizar o trabalho de auto-conhecimento. Para além disso, aquilo que tem sido chamado de Gênero, ou o papel social-sexual reservado ao corpo possuidor de vagina, NUNCA ESTÁ DISSOCIADO de como a vagina é tratada e concebida filosoficamente, religiosamente e cientificamente. Dessa forma, embora o gênero não seja um produto natural de uma determinada anatomia, ele é uma elaboração sobre essa anatomia, e com vistas à dominação da mesma.

Historicamente, falar de vagina, gostar de vagina, ousar conhecer a vagina por outro olhar que não seja o ocidental são atos de revolta, na medida em que o controle da mulher enquanto grupo está intimamente associado ao controle de sua anatomia. Saúde da mulher é pauta feminista. Parto, aborto, menstruação, são pautas feministas. Orgasmo feminino é pauta feminista, embora o liberalismo tenha feito um estrago ao sequestrá-lo, e transformá-lo na obrigação por excelência da mulher contemporânea. Falar que tais preocupações históricas tão caras a nós são "mero bucetismo" é uma nova forma de ataque às mulheres. As mulheres continuam engolindo pílulas desnecessárias produzidas pela indústria farmacêutica patriarcal; se antes nos  tratavam com eletrochoque, hoje em dia o eletrochoque vem em uma cartelinha, e as mulheres tomam uma pequena dose dele por dia. Se ates nossa loucura era tratada com histerectomia (remover o útero), hoje se trata com labioplastia (cirurgia cosmética para "corrigir" lábios vaginais supostamente grandes). Para quem acha que mutilação genital feminina só acontece em "países não civilizados", garotinhas que nascem com clitóris avantajado são operadas ainda bebês, pois os médicos dizem que um clitóris grandes pode deixar os futuros parceiros sexuais intimidados. E nem vou entrar no mérito das episiotomias, dos abortos clandestinos, da violência obstétrica. Violências misóginas que são feitas sobre nossas anatomias, através das nossas anatomias.

Mas aqui vai o parágrafo que vai mudar minha vida. Mas um pênis é um pênis. Anatomicamente, um pênis não é uma vagina. Historicamente, um pênis não é uma vagina. O tratamento recebido pelo pênis, por parte da religião, da medicina, da filosofia, não é o tratamento que a vagina recebe. Pênis não aborta, não sofre episiotomia. Eu não me oponho à cirurgia de redesignação sexual. Mas um pênis modificado, virado ao contrário, inserido em um canal criado cirurgicamente, não é uma vagina. Afirmar que a medicina pode criar uma vagina a partir de um pênis é misógino. É reduzir a vagina a um canal apto a receber um pênis, reafirmando um paradigma cristão segundo o qual a anatomia feminina não tem uma existência justificada em si mesma, senão para a realização do homem enquanto tal. Afirmar que um pênis é uma vagina é perpetuar o desconhecimento feminino em relação ao próprio corpo, e portanto é um obstáculo a nossa autonomia. Negar a complexidade e a beleza do nosso corpo, em um mundo onde o pênis é exaltado, é um ato de misoginia, e portanto é um ato anti-feminista. Afirmar que um pênis pode ser uma vagina é perpetuar a onipotência do falo, em um munto onde o falo pode penetrar qualquer vagina, mesmo que a mulher se oponha a esse ato de penetração violenta.

Um pênis não é uma vagina. 

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