terça-feira, 16 de junho de 2015

O corpo como metáfora

Não sou fã do Aristóteles, mas a definição aristotélica de metáfora pode ser um bom ponto de partida para a reflexão. Metáfora é uma coisa no lugar de outra. Simples assim.

No cotidiano, o que as metáforas fazem é encurtar o caminho do pensamento e da comunicação. No post passado, dei o exemplo do "quadro de cabeça para baixo". Ninguém vai abrir parênteses e explicar que na realidade o quadro não tem cabeça, trata-se apenas de uma expressão para dizer que está invertido, etc... Todo mundo sabe a diferença entre um ser humano e uma pintura a óleo.

O corpo está na base de muitas metáforas do nosso dia-a-dia, e tem em relação às metáforas uma anterioridade histórica. Tínhamos cabeças antes de ter a linguagem e as metáforas. Dessa forma, não é "a cabeça que está em cima", é o "em cima" que está na cabeça.

Contudo, muitas metáforas partem não propriamente do corpo, mas da percepção cultural que temos do corpo. O cérebro, como hoje sabemos, é um órgão vital, como o coração. Ou o fígado, e os rins. Porém, numa sociedade que hierarquiza mente e corpo, o cérebro é concebido como o mestre dos demais órgãos e partes. Fala-se em testa de ferro, ou cabeça de uma organização criminosa já partindo do princípio de que o cérebro domina, em um sentido hierárquico, que projeta no corpo, e portanto naturaliza, as relações de poder da sociedade.

A filosofia política tem lançado mão do corpo como metáfora para relação de poder já há muitos séculos. A figura do leviatã de Hobbes, em que a cabeça é a pessoa do líder, é bastante difundida e de fácil reconhecimento. Dessa forma, as metáforas sobre o corpo nos dão dois tipos de informação distintas e complementares: 1) o que pensamos do corpo e 2) o que pensamos daquilo que fazemos, metaforicamente, corresponder ao corpo.

Continuo com Sontag: acho que certas coisas não devem ser transformadas em metáforas. Na internet é comum ler meninos dizendo que "estupraram o botão do replay", e tendo em vista o que é um estupro, não acho que ele seja uma metáfora válida para nada. NADA. Exatamente por isso essa metáfora me interessa. Me interessa saber o que se pensa do estupro e de que maneira esse gesto corresponde ao estupro, na cabeça (de cima ou de baixo?) de quem elaborou a metáfora. Me interessa saber por que chamamos a política brasileira de pornográfica: o que pensamos da política brasileira e o que pensamos da pornografia.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Pornografia como metáfora - singela homenagem a Susan Sontag

Um debate recorrente para quem faz Letras é a possibilidade (ou não) de uma comunicação que não se valha da metáfora. Digamos que você veja um quadro invertido na parede: você provavelmente tentará comunicar a alguém que ele está de cabeça para baixo. Não ocorrerá a ninguém que você esteja mentindo, afirmando que a pintura possui cabeça - digamos que o quadro retrate um lindo jarro de flores. Ou então, alguém pergunta "onde você está, naquele livro que está lendo". A palavra "onde" designa lugar, e o livro é um objeto. Mas, se queremos saber qual é a porção já lida daquele livro, por quais eventos literários nosso interlocutor já passou, o uso de "onde" deixa de ser inadequado, atende a uma necessidade de comunicação.

Em A aids e suas metáforas, Sontag explora os usos que diversas doenças tiveram ao ser transformadas em metáfora: a peste e a sífilis como punição do sujeito sexualmente transgressor, o câncer como uma punição diluída e generalizada a uma civilização caótica, desgovernada, desumana e cruel. Especialmente no caso do câncer, doença que afetou a autora e acabou por levá-la à morte, Sontag relata que diversos pacientes incorporavam o imaginário criado por essas metáforas como uma espécie de sentença. Explico: o câncer havia se tornado uma metáfora para a crise, ou para a morte. Chamava-se inflação de câncer econômico, poluição de câncer do planeta, e no interessante (e terrível) caso de uma doença que metaforiza outra, a aids terminou por ser o câncer gay. Sua conclusão, resumidamente, é que algumas coisas não deveriam se tornar metáforas, pois isso inviabiliza uma análise profunda dos problemas que as originam.

Agora vamos falar de pornografia.

Pelo menos desde a feminista Camille Paglia, na década de 1990, a pornografia tem sido encarada como a evidência do sucesso do projeto de liberdade sexual, empreendida pelos jovens de 1960 e 1970. A pornografia, tomada como uma exposição do real do sexo, seria a democratização das imagens e dos saberes de si das mulheres, sobre seus corpos, sobre o exercício do prazer e de suas identidades. Paglia elege Madonna como um ícone desse projeto, em contraposição a Meg Ryan, que seria o ícone da "boa moça", heroína certinha e recatada, um verdadeiro fóssil de um ideal de ternura e pureza dos anos 1950. Essa interpretação de pornografia como vitória também se verifica na teoria queer, embora esta não se aventure a dizer que a pornografia é o sexo, bem como não afirma que exista um Sexo a priori, anterior à cultura e às relações de poder. E, tendo em vista que a teoria queer considera o sexo como um construto que não é alheio às relações de poder que conformam nossa sociedade, a defesa da (pós) pornografia por parte dessa teoria é no mínimo desconcertante.

Desde que me meti a estudar pornografia, a coisa mais difícil é encontrar uma definição, qualquer que seja, do que é pornografia. Seja daqueles que a promovem, seja daquelas que a combatem, o termo surge como um significado social amplamente difundido, que prescinde de maiores explicações. A pornografia é. E, como sempre acontece a quem se dedica a um determinado tipo de estudo, a delimitação dessa quimera chamada objeto é muito complicada. Portanto, hoje, eu não gostaria de falar da pornografia, mas da pornografia como metáfora que, volta e meia, surge na filosofia, nos estudos literários, e na literatura mesma. E queria falar também de quão contraditório é o uso metafórico que se faz da pornografia em relação à promoção da mesma como algo empoderador.

O filósofo Slavoj Zizek, ao formular seu conceito de "paixão pelo Real", elenca a pornografia como um exemplo flagrante de que a sociedade anseia por transpor a miríade de representações midiáticas cercam o sexo, o desejo de apreendê-lo em sua "coisa em si". Slavoj ancora boa parte dessa reflexão em Bataille, o cara que formulou a sentença de que o orgasmo é uma pequena morte. Sexo e destruição, para Zizek, não estão contrapostos, e ele reafirma tal ideia ao citar O império dos sentidos como uma outra evidência desse desejo de apreender o sexo em sua realidade material. Por um lado, o autor é bem certeiro em captar esse aspecto do discurso pornográfico, que diz "eu tenho a verdade sobre o sexo". Por outro, ao não questionar as relações de poder implicadas especialmente na pornografia audiovisual que analisa, transforma a violência sexual numa parte inextricável do próprio sexo, não abrindo margem para pensar por que, afinal, é a pornografia, e não a biologia, a sociologia, a antropologia, ou qualquer outro discurso, aquele sancionado para falar no assunto.

Explicando mais sucintamente: na verdade, o interesse de Zizek na pornografia é muito mais metafórico do que filosófico.

Prossigamos. O segundo exemplo diz respeito à minha área de interesse e pesquisa, o crítico (?) Karl Erik Schollhammer. Em  Ficção brasileira contemporânea, Schollhammer tenta traçar um panorama de tendências literárias contemporâneas no Brasil, observando (entre outros fatores) um retorno circular à violência urbana. A crueldade é um termo operacional para sua análise, embora seja um tanto vago, aludindo a uma suposta "crueza humana" - o que, portanto, desloca e esfumaça as diversas violências urbanas, bloqueando qualquer estudo que procure rastrear suas causas. A pornografia aparece no romance contemporâneo brasileiro na qualidade de pastiche de um gênero menor, que ambiciona efeitos estéticos. Não fica claro se por "pornografia" o autor designa cenas de sexo explícito ou recursos estéticos da pornografia audiovisual incorporados à literatura na qualidade de experimentação. O que me interessa é uma espécie de ato falho, na qual o autor acusa o filme Homem do ano de "superexposição pornográfica da violência dos fatos". Nesse trecho, a pornografia aparece adjetivando, aprofundando, tanto a superexposição quanto a violência. Novamente, é possível questionar: o sexo é, afinal, violência per se, ou a pornografia é o olhar excessivo sobre um sexo violento?

Meu terceiro e último exemplo também diz respeito à minha atual pesquisa (por enquanto informal...). Trata-se do conto "Intestino grosso", de Rubem Fonseca, escrito em 1975. Trata-se de um conto que beira o manifesto, podendo ser lido como a ironia de um escritor/narrador que caga para leitores e críticas, ou como um lance de dados que ao mesmo tempo prevê os rumos da literatura brasileira e conclama outros artistas a seguir sua vereda. Seja como for, já pressentindo os meios de comunicação de massa como uma competição, o narrador/escritor oferece aos leitores uma espécie de antídoto, uma pílula vermelha contra a matrix das novelas folhetinescas e adocicadas: a pornografia como terapia de choque que é, ao mesmo tempo, catártica - aliás, numa pegada bem reichiana. Ao longo do conto, que descreve a relação de um escritor e um repórter, é este quem traz a pornografia à baila diversas vezes, obtendo respostas sempre evasivas do outro. Por um lado, o escritor afirma que a pornografia é a alternativa à bomba (coisa que Reich chega a dizer textualmente, se não estou enganada), sendo portanto uma via de exercício e escoamento de pulsões verdadeiras e humanas. Por outro, quando perguntando sobre o teor pornográfico de seus livros, o escritor desfere uma metáfora: "meus livros só têm gente desdentada". Quando a pornografia é aludida enquanto sexo, é boa, catártica, alternativa à alienação e à violência; todavia, quando usada para metaforizar, ela alude a um campo semântico negativo, de pobreza e privação.

De minha parte, eu ainda não tenho uma conclusão. Mas, retomando a Sontag, para quem nem tudo nessa vida deveria servir de metáfora, talvez esse seja o caso da pornografia também.