Este texto introduz uma série de reflexões sobre a situação da mulher geek/nerd perante a indústria cultural, seja na qualidade de sua representação simbólica ou de consumidora de bens culturais.
Frequentemente, pensa-se na feminista como uma
mulher composta de puro pragmatismo. Na dicotomia razão/sensibilidade, ela é
capaz de abraçar a primeira e recalcar a segunda. Tal pensamento é interessante
por acreditar que existe algo intrinsecamente contraditório entre o que é
melhor para as mulheres em um sentido político (emancipação) e seus interesses
"naturais", emocionais, amorosos e sexuais. Ti-Grace, uma feminista
de segunda onda, disse certa vez que, se as feministas tivessem de escolher
entre o sexo e a liberdade, escolheriam essa última. Discutir a interface entre
desejo e interesse, como faz Gayatri Spivak, é tentador. Mas esse não é o
tópico do dia.
O tópico é: eu estaria mentindo ao dizer que leio
teoria feminista por um interesse puramente pragmático. Não: eu gosto de ler
teoria feminista. Para além de aplacar muitas angústias existenciais, eu gosto
de ser desafiada intelectualmente, incomodada. Leio feministas de várias
correntes, discuto com elas, escrevo réplicas, tréplicas. Traduzo textos que
ninguém mandou traduzir, desconstruo argumentos que ninguém mandou
desconstruir, leio livros que ninguém mandou ler. Se eu tivesse que fazer uma
varredura das minhas memórias e procurar uma sensação no meu passado que fosse
de alguma forma semelhante a isso, eu provavelmente diria que o prazer da
tradução é muito semelhante a passar da Tubular no Super Mario World.
O que é uma nerd/geek afinal? Eu diria que,
primeiramente, é uma moça, geralmente jovem, que gosta de ser desafiada. Que
não se contenta com o lugar alienante reservado a ela pela cultura de massa;
que não se satisfaz com o material pobre e superficial a ela oferecido pelas
novelas, pela literatura de folhetim, pelas princesas da Disney e pelo mundo
encantado e cor de rosa da Barbie - portanto, a nerd costuma ter, mesmo que instintivamente, uma perspectiva crítica acerca dos papeis sexuais reservados às mulheres no patriarcado. Às vezes, uma nerd é até uma menina que
curte tudo isso, mas que sente a necessidade de ir além. Portanto, ela também é
uma pesquisadora autônoma, desprovida de método científico, alguém que fica
errante entre bibliotecas, sebos e livrarias, procurando materiais que atendam
a seus interesses.
Todavia, os sistemas de produção e recepção de arte
e cultura estão, hoje em dia, mediados pelo capitalismo (daí o termo mídia), resultando naquilo
que alguns teóricos acabaram por chamar de indústria
cultural. O complexo editorial, as grandes empresas de games, os grandes selos de HQs esvaziam, de maneira geral, os bens
culturais de sua aura, isto é, de sua autenticidade, da sua exclusividade, de
sua individualidade. Embora HQs antigas
e discos de vinil sejam ainda objetos de culto, a verdade é que, em uma
produção massiva de bens culturais, são pouquíssimos aqueles que se salvam. E
mesmo aqueles que parecem sobreviver ao tempo foram criados por empresas,
através de pesquisas de mercado exaustivas, e profissionais tecnicamente
formados para desenhar ou escrever em determinados estilos um tanto quanto
rígidos. Basta ver como as novelas se parecem, ou a música pop. Existe um
padrão.
Nesse sentido, a nerd é também uma consumidora.
Diante da massificação, nós somos aquelas que procuram o produto que agregue um
investimento técnico maior. Aquelas que gostam de cinema autoral, como
Almodóvar e Tarantino; gostam de Super Homem, mas só quando escrito por Alan
Moore; não gostam de Crepúsculo, mas conhecem a obra inteira de Anne Rice, e
assim por diante. Dito de um modo menos romântico, a nerd é uma consumidora que
não se pensa enquanto tal. Detendo um conhecimento de mundo vasto, mas pouco
específico, nós somos aquelas pessoas que farejam mitologia nórdica em Final
Fantasy, entre outras referências literárias e artísticas em geral.
Essa análise está apoiada na famosa escola de
Frankfurt, pensadores marxistas que procuram compreender os meios de
comunicação criticamente, estudando a maneira pela qual eles estão imbricados
com o capitalismo enquanto modo de produção social que gera relações de poder
específicas. O recorte sexual, portanto, não está na ordem do dia. É
insuficiente dizer que mulheres são consumidoras de bens culturais; na verdade,
nós comparecemos no mundo da comunicação simultaneamente como consumidoras e
produto. Compre esta cerveja e o estupro é por nossa conta, é o que as empresas
parecem dizer. Quando estamos, então, falando de produtos culturais premium, a misoginia ganha uma roupagem
especial. Uma vez que estes produtos possuem um investimento técnico e estético
aparentemente maior, eles agregam um maior valor financeiro que permite às
empresas abrir mão de certas fatias do mercado, e uma dessas fatias somos nós,
as mulheres. Lançar mão de misoginia não é, por isso, um problema para essa
galera - inclusive porque os homens continuam ganhando melhores salários,
ocupando melhores empregos e melhores cargos em suas empresas. Os homens,
enquanto um grupo, têm mais dinheiro; e enquanto for assim, as empresas que
investem em games, HQs, literatura blockbuster, entre outros produtos culturais
premium, não vão precisar se
preocupar com a gente.
A indústria cultural de produtos premium não é feita para nós e age como
se simplesmente nós não existíssemos. Ou pior: tratam a gente exatamente como
os produtos de massa. Compre este game e o estupro sai por nossa conta, parecem
dizer alguns desenvolvedores.
continua...