domingo, 12 de abril de 2015

Mas o que é uma nerd, afinal?

Este texto introduz uma série de reflexões sobre a situação da mulher geek/nerd perante a indústria cultural, seja na qualidade de sua representação simbólica ou de consumidora de bens culturais.

Frequentemente, pensa-se na feminista como uma mulher composta de puro pragmatismo. Na dicotomia razão/sensibilidade, ela é capaz de abraçar a primeira e recalcar a segunda. Tal pensamento é interessante por acreditar que existe algo intrinsecamente contraditório entre o que é melhor para as mulheres em um sentido político (emancipação) e seus interesses "naturais", emocionais, amorosos e sexuais. Ti-Grace, uma feminista de segunda onda, disse certa vez que, se as feministas tivessem de escolher entre o sexo e a liberdade, escolheriam essa última. Discutir a interface entre desejo e interesse, como faz Gayatri Spivak, é tentador. Mas esse não é o tópico do dia.
               
O tópico é: eu estaria mentindo ao dizer que leio teoria feminista por um interesse puramente pragmático. Não: eu gosto de ler teoria feminista. Para além de aplacar muitas angústias existenciais, eu gosto de ser desafiada intelectualmente, incomodada. Leio feministas de várias correntes, discuto com elas, escrevo réplicas, tréplicas. Traduzo textos que ninguém mandou traduzir, desconstruo argumentos que ninguém mandou desconstruir, leio livros que ninguém mandou ler. Se eu tivesse que fazer uma varredura das minhas memórias e procurar uma sensação no meu passado que fosse de alguma forma semelhante a isso, eu provavelmente diria que o prazer da tradução é muito semelhante a passar da Tubular no Super Mario World.
                  
O que é uma nerd/geek afinal? Eu diria que, primeiramente, é uma moça, geralmente jovem, que gosta de ser desafiada. Que não se contenta com o lugar alienante reservado a ela pela cultura de massa; que não se satisfaz com o material pobre e superficial a ela oferecido pelas novelas, pela literatura de folhetim, pelas princesas da Disney e pelo mundo encantado e cor de rosa da Barbie - portanto, a nerd costuma ter, mesmo que instintivamente, uma perspectiva crítica acerca dos papeis sexuais reservados às mulheres no patriarcado. Às vezes, uma nerd é até uma menina que curte tudo isso, mas que sente a necessidade de ir além. Portanto, ela também é uma pesquisadora autônoma, desprovida de método científico, alguém que fica errante entre bibliotecas, sebos e livrarias, procurando materiais que atendam a seus interesses.
                   
 Todavia, os sistemas de produção e recepção de arte e cultura estão, hoje em dia, mediados pelo capitalismo (daí o termo mídia), resultando naquilo que alguns teóricos acabaram por chamar de indústria cultural. O complexo editorial, as grandes empresas de games, os grandes selos de HQs esvaziam, de maneira geral, os bens culturais de sua aura, isto é, de sua autenticidade, da sua exclusividade, de sua individualidade. Embora HQs antigas e discos de vinil sejam ainda objetos de culto, a verdade é que, em uma produção massiva de bens culturais, são pouquíssimos aqueles que se salvam. E mesmo aqueles que parecem sobreviver ao tempo foram criados por empresas, através de pesquisas de mercado exaustivas, e profissionais tecnicamente formados para desenhar ou escrever em determinados estilos um tanto quanto rígidos. Basta ver como as novelas se parecem, ou a música pop. Existe um padrão.
                  
Nesse sentido, a nerd é também uma consumidora. Diante da massificação, nós somos aquelas que procuram o produto que agregue um investimento técnico maior. Aquelas que gostam de cinema autoral, como Almodóvar e Tarantino; gostam de Super Homem, mas só quando escrito por Alan Moore; não gostam de Crepúsculo, mas conhecem a obra inteira de Anne Rice, e assim por diante. Dito de um modo menos romântico, a nerd é uma consumidora que não se pensa enquanto tal. Detendo um conhecimento de mundo vasto, mas pouco específico, nós somos aquelas pessoas que farejam mitologia nórdica em Final Fantasy, entre outras referências literárias e artísticas em geral.
                 
Essa análise está apoiada na famosa escola de Frankfurt, pensadores marxistas que procuram compreender os meios de comunicação criticamente, estudando a maneira pela qual eles estão imbricados com o capitalismo enquanto modo de produção social que gera relações de poder específicas. O recorte sexual, portanto, não está na ordem do dia. É insuficiente dizer que mulheres são consumidoras de bens culturais; na verdade, nós comparecemos no mundo da comunicação simultaneamente como consumidoras e produto. Compre esta cerveja e o estupro é por nossa conta, é o que as empresas parecem dizer. Quando estamos, então, falando de produtos culturais premium, a misoginia ganha uma roupagem especial. Uma vez que estes produtos possuem um investimento técnico e estético aparentemente maior, eles agregam um maior valor financeiro que permite às empresas abrir mão de certas fatias do mercado, e uma dessas fatias somos nós, as mulheres. Lançar mão de misoginia não é, por isso, um problema para essa galera - inclusive porque os homens continuam ganhando melhores salários, ocupando melhores empregos e melhores cargos em suas empresas. Os homens, enquanto um grupo, têm mais dinheiro; e enquanto for assim, as empresas que investem em games, HQs, literatura blockbuster, entre outros produtos culturais premium, não vão precisar se preocupar com a gente.

 A indústria cultural de produtos premium não é feita para nós e age como se simplesmente nós não existíssemos. Ou pior: tratam a gente exatamente como os produtos de massa. Compre este game e o estupro sai por nossa conta, parecem dizer alguns desenvolvedores. 

continua...

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Diário de uma feminista - mulher, interrompida



a beleza do mundo que logo findará,
tem dois gumes, um de riso, outro de angústia,
que cortam o coração em pedaços
- Virgínia Woolf



Na minha turma tem uma garota que acorda três e meia da manhã para ir à faculdade. Eu acordo às cinco. Sou uma privilegiada: às vezes acordo antes do despertador. Primeiro passo: alimentar os cachorros. Limpar o olho do cachorro que tem remela eterna. Segundo passo: alimentar os gatos. Dar paté ao gato que não tem mais dentes. Terceiro passo: me alimentar. Quarto: me vestir. Quinto: ganhar a rua cinco e quarenta da manhã. É noite. Existe algo de profundamente antinatural em estar na rua a essa hora, devassando a vida das estrelas que estão se retirando para dormir, descabeladas, em seus pijamas. Acordar antes do galo. Mas hoje estava chovendo, não havia estrelas para se ver.

O ônibus passa logo. Poltronas vazias me animam. Sento e saco um texto para ler. Não sei do que vai se tratar a aula de hoje, mas revejo anotações. Uma velha ideia se levanta dentro de mim: aquele texto sobre cultura nerd e The big bang theory. Trechos inteiros me vêm à memória, do jeito que eu tinha esboçado semanas atrás. Fico contente com a precisão da minha memória. O texto fotocopiado fica em meu colo, enquanto vejo as ruas passando ao meu redor, e minha mente desliza entre pensamentos, escolhendo as palavras. Esta sim, esta não. Secretamente (agora não mais) eu sou muito vaidosa com minhas ideias.

Chego à faculdade, tomo café, converso, procedimentos de praxe para que o sono não me ocorra. Tenho um sono terrível às sete da manhã. A professora, que também é pontual, chega logo, abre a sala, coloca livros sobre a mesa como quem decora um escritório fast-food. Uma performance. Logo aquela sala será de outra professora. Sento e espero o que vem a seguir. Eu sou uma aluna aplicada. Às vezes tenho vergonha, sei que nessa "sede de saber" reside uma dose inevitável de submissão, submissão necessária à sobrevivência na academia. Estou me humilhando por um diploma, de olho no mestrado. Mas é a vida. Eu quero me aposentar com pensão do governo.

A mestranda vai ligando a televisão. Vamos ver um filme. Merda. Eu sei qual é o filme. Versão cinematográfica do livro que estamos lendo, Um crime delicado. A semântica diz tudo: trata-se de um crime, algo masculino na maior parte do tempo. A outra palavra, "delicado", remete ao campo semântico da feminilidade. É um crime cometido contra a mulher, mas que não pode simplesmente ser posto desta forma. É um estupro, com certeza, eu já sabia antes de ler o livro, já que quando o assunto é estupro, tudo é assunto, menos o estupro. O livro, narrado em primeira pessoa, é aquela história que toda feminista conhece, do cara que tenta negar o estupro afirmando ser humano. E, como estupros são cometidos por monstros, ele obviamente não pode ter feito tal coisa. Ainda mais ele, um erudito crítico de teatro. No que consiste sua autodefesa: em dar mostras de sua incrível erudição, na demonstração de uma sensibilidade notável.

Já dizia Andrea Dworkin: os artistas ouvem o vento murmurar e o mar chorar, mas para eles as mulheres são mudas. Janice Raymond, outra feminista, dirá também que Foucault, guru da pós-modernidade, vê nas rupturas da história seu potencial revolucionário. Isso é, sem dúvida, ignorar que a história das mulheres (ou antes, as histórias) têm uma única coisa de contínua: a de sermos caladas e interrompidas. O estupro é uma interrupção na vida da mulher. Mas para o artista, ele é a tela em branco na qual se desenrola o drama da consciência. Assim como Foucault vê em Sade o ícone por excelência da transgressão, Sérgio Sant'Anna usa a trangressão da dignidade feminina, o estupro, como um campo fértil para a literatura pós-moderna, que usa a violência como pano de fundo para que A Literatura se desenrole sobre si própria, num jogo de espelhos metalinguísticos que não tem fim. A modernidade abalou as dicotomias forma e conteúdo, ritmo e melodia, figura e fundo com suas estratégias pictóricas adotadas mais tarde pela literatura. A pós-modernidade retoma as dicotomias, invertendo-as: o enredo é o pretexto da forma. A violência contra a mulher não é o assunto do enredo, mas o triste pano de fundo para que o verdadeiro enredo, os debates internos do Eu masculino, possam acontecer.

E, é claro, vai haver a cena do estupro. Não são oito da manhã e eu já me deparo com uma mulher estuprada. Todo o texto que eu imaginara antes me escapa. É instantâneo. O diretor do filme tem a decência de, ao contrário do autor do livro, não deixar dúvidas quanto à violência que ali aconteceu. Aconteceu. Por outro lado, Inês, a mulher estuprada, é rica e detalhadamente representada em sua relação com um homem muito mais velho que a usa como modelo para suas pinturas. Inês, que no livro manca, tem apenas uma perna no filme. E por isso procura se afirmar através de sua sexualidade, tornando-se uma mulher lasciva, que compensa sua "deficiência" provocando homens e levando-os à loucura na cama. Como pontua Andrea Dworkin, esse é um pensamento profundamente pornográfico: o de que o poder feminino consiste em seu potencial de extrair o precioso esperma de um homem. Inês, uma mulher linda e jovem, porém com uma auto-estima danificada, reafirma-se tornando-se a musa desse pintor que a desnuda e, por minutos e mais minutos, coloca-a em elaboradas posições, desconfortáveis, pintando-a. Roubando-lhe a imagem, expondo sua nudez e tornando-a a anônima, é assim que um pintor "exalta" uma mulher. E o final do processo é amplamente romantizado: ao ver-se nua, pintada em uma tela onde se vê um grosso e enorme pênis na iminência de penetrá-la, ela cria coragem para aceitar-se tal qual é, abandonando a perna postiça.

Trata-se de uma manobra inteligente do diretor: salvaguardar a pornografia, diferindo-a do horrendo, do estupro. O "crime delicado", que no livro é o estupro, torna-se o "crime invisível", que no filme é a pornografia.

Mas aquele texto que eu tinha imaginado, tão feliz às cinco e cinquenta da manhã de segunda-feira, esse está perdido. O patriarcado vence. Mulher, interrompida.