quarta-feira, 11 de março de 2015

Teste de Bechdel: uma metodologia feminista

Uma coisa que a gente vai notando sobre os livros feministas, com o tempo, é que muitos deles carecem de uma metodologia, uma "pegada" científica. Isto não é ruim: basicamente, os livros clássicos costumam lidar com tantas questões simultaneamente, que acabam por não se aprofundar muito em determinados temas. Vejamos o famoso Segundo Sexo de Beauvoir: o primeiro volume abrange desde a biologia até a Literatura, criticando discursos misóginos que perpassam diversas ciências e saberes: marxismo, psicanálise, literatura, entre outros. Isto, só no primeiro volume.

Por um lado, essa análise ampla e diversa tem a vantagem de nos mostrar que o pensamento masculino sobre a mulher tem algumas premissas que estão presentes em múltiplos campos do saber. Por outro, "ciências" tão díspares quanto o marxismo e a biologia são olhados sem pensar as especificidades do funcionamento de cada discurso.

Este blog, apesar de não ter um objetivo revolucionário, tem um objeto privilegiado para sua análise: a indústria cultural. Por ora, vamos tratar essa indústria como "mídia", como um enorme engenho para a fabricação de bens culturais em massa. Essa produção insere a mulher ao menos de duas maneiras: na qualidade de consumidora e na qualidade de produto. Enquanto o homem é interpelado como um sujeito que atua sobre a mercadoria, através da aquisição (compra) e através do uso, a mercadoria, quando vendida à mulher, é apresentada como algo que atuará sobre ela, fazendo dela objeto a ser utilizado, tanto pela mercadoria (que atua sobre ela, modificando-a, tornando-a apta ao olhar masculino), quanto pelos homens que consomem um determinado produto.

Eu não sou a pioneira nesse campo. Feministas que vieram antes de mim já pensaram essa questão, e formularam aparatos teóricos para abordar esses produtos midiáticos. Essas ferramentas muitas vezes estão por aí, jogadas em blogs. A partir de hoje, então, estou me comprometendo a coletar algumas dessas ferramentas, ou conceitos, articulá-las para um uso sistemático, porque aparentemente é algo que capricornianas fazem e me parece divertido.

O teste de Bechdel

Alison Bechdel é lésbica e cartunista, conhecida pelos quadrinhos Dykes to watch out for. Descobri a Bechdel por acaso quando, há algum tempo atrás, eu estava pesquisando mulheres, quadrinhos e zines. Mais tarde foi que, através do canal Feminist Frequency, fiquei sabendo que um episódio dessa trama em quadrinhos tinha se tornado uma espécie de teste para ver se um determinado filme de cinema era minimamente representativo com as mulheres.


As regrinhas são só 3, e são bem simples:

1) O filme, tem, ao menos 2 mulheres?
2) Elas falam entre si?
3) Elas falam entre si sobre um assunto que não sejam... homens?

E como são 3 regrinhas simples, nossa primeira reação é pensar "essa foi fácil, todos os filmes que vi recentemente passam no teste". Então, você procura relembrar a cena em que as personagens conversam entre si. E você se lembra que alguns desses filmes só têm UMA personagem feminina.

Então, apesar da simplicidade, o teste se mostra útil para vermos que as mulheres, na indústria cinematográfica, só estão ali no papel de enfeite. Enquanto homens são representados como seres humanos complexos, interessados em múltiplos aspectos do mundo que os cerca, a mulher tem um único interesse: tornar-se objeto de consumo ajustado ao que o olhar masculino demanda dela.

O teste e seus limites

O teste não foi pensado como uma ferramenta de pesquisa, embora eu pretenda usá-lo dessa forma. E, como foi pensado para olhar o cinema e não, digamos, um seriado, ou um livro, alguns ajustes acabam sendo necessários. Por isso, quando eu usar o teste por aqui (e eu pretendo usar muito), será utilizada uma "forma expandida".

Uma das perguntas que eu acrescendo ao teste é: essas mulheres têm nome? É muito comum, especialmente em videogames, introduzir personagens que conversam entre si sobre algum aspecto da trama, conferindo veracidade à história. E é igualmente comum que elas sejam simples pessoas anônimas, que não sejam personagens em um sentido mais profundo e completo da palavra. O apagamento dos nomes é um aspecto crucial, um procedimento padrão, da objetificação das mulheres na mídia; por isso, considero essa pergunta relevante.

No decorrer de uma série de TV, quadrinhos ou desenho animado, as mulheres provavelmente vão acabar conversando entre si sobre alguma coisa, em algum episódio. Porém, como vou comentar detalhadamente no futuro, às vezes menos de dez por cento dos episódios de uma série passam no teste. Por isso, acho importante aplicar o teste isoladamente em cada episódio, para obter um panorama mais completo.

Outra coisa que eu dispenso é a função fática da comunicação. Diálogos em que não há troca relevante de informação, que não passam de um "oi, tudo bem", não são contados por mim. Estamos buscando a representação das mulheres enquanto seres humanos, personagens que requerem o mínimo de profundidade, e não enfeites de tela.

E, por último, eu faço uma exigência caprichosa: essa conversa tem que durar mais de 30 segundos. Não é pedir demais... OU É?

Conclusão: o teste como eu aplico

Não é muito diferente do original, apenas acrescido de duas perguntas:

1) O produto em questão tem, ao menos, duas mulheres?
2) Elas têm nome?
3) Elas conversam entre si?
4) Elas conversam entre si sobre alguma coisa que não sejam homens?
5) Essa conversa tem mais de trinta segundos?

Esse teste não comprova que um determinado objeto seja feminista. Filmes como Frozen e Valente passam no teste sem dificuldades, mas dificilmente podem ser chamados de feministas. O teste de Bechdel, portanto, é uma verificação mínima sobre o respeito no trato com as mulheres, quando de sua representação midiática.

domingo, 8 de março de 2015

Vagina e patriarcado

Este texto está incompleto em muitos sentidos, uma vez que o material de consulta não está comigo - está emprestado. Então eu sei que ele vai incorrer em diversas imprecisões, e por isso quem puder contribuir corrigindo, dando uns toques, pode se sentir à vontade nos comentários.

Este é um texto sobre a vagina no patriarcado. Ele é um texto sobre a apropriação da vagina por aquilo que tem sido chamado de Patriarcado, ou de Ocidente, mas também de Capitalismo. É uma história do olhar masculino, assentado em instituições científicas e religiosas, bem como uma história de resistência das mulheres que sobreviveram e ainda sobrevivem. O recorte temporal escolhido parte da Grécia antiga, mais precisamente de Aristóteles, por dois motivos principais. O primeiro: para mim, nem as teorias de Engels/Morgan, nem a obra de Gerda Lerner, esgotam minhas dúvidas sobre o surgimento do patriarcado; são duas teorias que tomam a heterossexualidade tal como a conhecemos como uma evidência história estável e pouco questionada. Em segundo lugar, Aristóteles é um marco ocidental não só para o pensamento masculino sobre as mulheres, como também da arte, da linguagem, entre muitos outros assuntos. Assim, ele me parece um bom marcador de "pensamento ocidental/patriarcal como o conhecemos".

Aristóteles afixa um modelo de interpretação dos genitais que por muito tempo se torna um paradigma do conhecimento patriarcal, apelidado de "modelo unissexual". Para Aristóteles, o masculino e o feminino não são naturezas radicalmente diferentes, mas apenas uma natureza, que incidentalmente se desenvolve de uma maneira ou de outra. O pênis e a vagina seriam o mesmo órgão; um voltado para dentro, outro voltado para fora. A fêmea seria o macho incompleto e defeituoso; a vagina, vista como "invaginação do pênis", passa a ser uma metonímia pela qual a mulehr é entendida como "o homem ao contrário". Se o homem é razão, luz, progresso, ordem, a mulher é loucura (histeria), escuridão, retrocesso, desordem. Seguindo o pensamento de Platão, a racionalidade é marcada pela constância, pela capacidade de um indivíduo em ser igual a si mesmo em diferentes momentos da vida; o ciclo feminino, com suas oscilações, era portanto o marcador de um corpo inapto ao pensamento racional por excelência.

O paradigma cristão, embora tenha incrementado essa visão dos corpos, não operou uma mudança significativa no modelo aristotélico de interpretação. As dores do parto e da menstruação, dadas a Eva como punição pelo incidente da maçã, recaíam sobre a mulher não por sua anatomia, mas pela punição história ao gênero feminino. Os cristãos continuaram estudando o corpo feminino pelo prisma quebrado de sua própria moralidade, e na busca de entender os desígnios de deus sobre a mulher, faziam-no a partir do contraste aparente entre o corpo feminino e o masculino. Se as mulheres eram "mais moles", menores, e de ossos arredondados, pensava-se que a "fragilidade" de sua anatomia atestava o destino de ser governada pelo homem - tal como diziam as escrituras.

Ao passo que se "produzia conhecimento" sobre o corpo feminino, a verdade é que as mulheres dispunham de um vasto conhecimento sobre si próprias. Esse conhecimento, até a unificação dos estados nacionais, era restrito às elites econômicas, enquanto mulheres camponesas ou profissionais liberais assentadas nas cidades dispunham de conhecimentos milenares sobre alimentação, ervas e chás, parto, gestação, menopausa... Silvia Federici, em Caliban and the Witch, sublinha a importância da caça às bruxas para a unificação dos Estados Patriarcais. Para a autora, a necessidade de uma demografia controlada voltada para o trabalho, de um Estado na gerência plena das funções econômicas, requeria um controle mais preciso do corpo feminino, sendo este uma "peça" fundamental da reprodução da mão-de-obra. Ao contrário do que está consagrado no imaginário popular, a "caça às bruxas", que tem de fato suas raízes no catolicismo, é um advento altamente Moderno, que rapidamente foi adotado e encorajado pelos Estados, e segundo Laura de Mello e Souza, foi muito mais ardente entre as recém surgidas igrejas protestantes.

Mary Del Priore, em "Magia e colônia: o corpo feminino", afirma que nas colônias esse paradigma era ainda mais frouxo. Havia grande escassez de médicos enviados pela coroa, e a Igreja fazia "vista grossa" às curandeiras e parteiras, vistas como um "risco menor" à empresa colonial. Enquanto isso, em Portugal, as escolas de medicina eram largamente tuteladas pela Igreja, sendo expoentes do pensamento escolástico. Tal pensamento, concebendo a mulher apenas como veículo da reprodução do Homem, tinha grande interesse em compreender o funcionamento do aparelho reprodutor feminino, mais especificamente do útero ou madre; mais uma vez, o aparelho reprodutor é metonímia do corpo e da alma; uma mulher que não se engajasse na reprodução estaria sujeita à melancolia, à ninfomania. A menstruação era concebida como o descarte do excesso de sangue na mulher. Os vapores exalados pelo sangue menstrual eram vistos como tóxicos, e provocadores de alucinações. Assim, a "cura" era o homem: a mulher deveria estar permanentemente grávida, segundo o papel que lhe reservara o Bom Deus, evitando os males da ninfomania, do útero errante, da melancolia, entre outros.

Com o advento do microscópio, a medicina patriarcal descobre que os testículos femininos produzem um tipo de organismo (sic) diferente dos testículos masculinos, donde o modelo unissexual entra em declínio. Porém, uma vez a serviço do patriarcado, isso não foi suficiente para que o corpo feminino, em especial o aparelho reprodutor, passasse a ser estudado com o devido respeito ou cuidado, e muito menos serviu para que conhecimentos tradicionais pagãos, ou no caso colonial conhecimentos indígenas e oriundos de África, fossem resgatados como fonte de consulta e conhecimento. Pelo contrário, o modelo bi-sexual inaugura uma era de fêmeas perigosas e desconhecidas: uma vez que o conhecimento produzido até então era inaproveitável, a mulher passava a ser uma natureza completamente nova, continente desconhecido, que se por um lado é detentora de uma sexualidade que não diz respeito apenas à reprodução, tem de ser controlada sob o risco de arruinar toda a ordem-e-progresso da sociedade burguesa que procurava se estruturar.

Essa troca de modelos de interpretação, é claro, não foi radical nem instantânea, de modo que pensadores como Rousseau, Diderot e Freud ainda persistiam no paradigma que viera anteriormente. Especialmente Freud persiste no modelo unissexual, e é altamente cristão ao afirmar que a inveja é característica fulcral da mulher. Não só isso: quando, no complexo de Édipo, a menina olha para o pênis do pai e conclui que foi castrada, imputa-se à menina a noção de um dia já ter sido um homem que foi, a posteriori, deformado ou modificado. A hipótese hidráulica do desejo, de que a repressão deste estaria no bojo da histeria, apenas faz deslocar a causa da loucura do sangue menstrual para o orgasmo (ou falta dele), mas de maneira geral, o pensamento freudiano preserva suas bases cristãs e aristotélicas.

Agora vamos falar um pouco da nossa amiga, da nossa ppk, da nossa vagina. A vagina não é um pênis ao contrário. as escolas insistem em desenhar no quadro negro (atualmente branco) uma vagina em forma de cenoura, como se fosse uma cavidade oca pronta a receber o pênis, ou mesmo como se já estivesse virtualmente penetrada. ERRADO. A vagina não é cavidade, é um canal. Como outros canais do corpo, ela é um canal virtual; quando não tem "nada" lá dentro, ela está fechadinha, suas paredes se encostam. por falar em paredes, a vagina é feita de muitos tecidos, incluindo tecidos musculares, que podem ser exercitador para que o tônus muscular se mantenha ao longo da vida. Ela tem uma lubrificação que lhe é própria, e que costuma estar em perfeita sintonia com o nosso desejo. Isso derruba a hipótese de que o corpo feminino seja um corpo cuja sexualidade gira em redor APENAS da reprodução; não basta estar fértil para ter tesão, e muito menos ovulação implica ter atração sexual por homens. Voltando à parte de "não haver nada lá dentro": ERRADO. A vagina tem o que chamamos de flora vaginal, bactérias que lhe são próprias e que não são sujeira. Pelo contrário, estão ali para manter tudo em ordem. Inclusive, se você já tomou algum antibiótico muito forte, pode ter sentido coceira na vagina, ou mesmo pode ter tido alguma secreção diferente do normal. Isso acontece porque, quando essa flora se desequilibra, pode ocorrer candidíase, cujo sintoma mais comum e aparente é o prurido, ou coceira. O útero, por sua vez,não é uma bolsa escrotal virada ao contrário. Ele tem paredes grossas, que também têm músculos, e que se incham de sangue para que a placenta possa se implantar e alimentar o bebê. Os ovários não são testículos, e as trompas não são canais deferentes (ou seja lá o que tem de supostamente análogo na anatomia masculina, desculpa mas não vou fica lendo sobre pinto, não sou obrigada).

No Patriarcado (ou ocidente, como algumas preferem) o controle das mulheres enquanto recurso na reprodução humana (que passa pela execução de trabalhos e tarefas que à primeira vista podem não se relacionar com reprodução) passa pela apropriação de seus órgãos genitais e reprodutores como um recurso à disposição dos homens e do Estado. Essa apropriação se dá, fisicamente, pelo terror generalizado ao estupro, que limita nossa mobilidade; pela apropriação médica do conhecimento sobre o nosso corpo, na medida em que, para nos conhecermos e tratarmos, temos de nos alienar na mão de um profissional que não necessariamente é mulher; pela apropriação estatal que nos impede de abortar. A alienação em relação ao conhecimento é fundamental na nossa dominação, e a imagem da vagina como "suja e fétida" faz parte dessa alienação, na medida em que, principalmente as mulheres heterossexuais, se vêem impelidas a terceirizar o trabalho de auto-conhecimento. Para além disso, aquilo que tem sido chamado de Gênero, ou o papel social-sexual reservado ao corpo possuidor de vagina, NUNCA ESTÁ DISSOCIADO de como a vagina é tratada e concebida filosoficamente, religiosamente e cientificamente. Dessa forma, embora o gênero não seja um produto natural de uma determinada anatomia, ele é uma elaboração sobre essa anatomia, e com vistas à dominação da mesma.

Historicamente, falar de vagina, gostar de vagina, ousar conhecer a vagina por outro olhar que não seja o ocidental são atos de revolta, na medida em que o controle da mulher enquanto grupo está intimamente associado ao controle de sua anatomia. Saúde da mulher é pauta feminista. Parto, aborto, menstruação, são pautas feministas. Orgasmo feminino é pauta feminista, embora o liberalismo tenha feito um estrago ao sequestrá-lo, e transformá-lo na obrigação por excelência da mulher contemporânea. Falar que tais preocupações históricas tão caras a nós são "mero bucetismo" é uma nova forma de ataque às mulheres. As mulheres continuam engolindo pílulas desnecessárias produzidas pela indústria farmacêutica patriarcal; se antes nos  tratavam com eletrochoque, hoje em dia o eletrochoque vem em uma cartelinha, e as mulheres tomam uma pequena dose dele por dia. Se ates nossa loucura era tratada com histerectomia (remover o útero), hoje se trata com labioplastia (cirurgia cosmética para "corrigir" lábios vaginais supostamente grandes). Para quem acha que mutilação genital feminina só acontece em "países não civilizados", garotinhas que nascem com clitóris avantajado são operadas ainda bebês, pois os médicos dizem que um clitóris grandes pode deixar os futuros parceiros sexuais intimidados. E nem vou entrar no mérito das episiotomias, dos abortos clandestinos, da violência obstétrica. Violências misóginas que são feitas sobre nossas anatomias, através das nossas anatomias.

Mas aqui vai o parágrafo que vai mudar minha vida. Mas um pênis é um pênis. Anatomicamente, um pênis não é uma vagina. Historicamente, um pênis não é uma vagina. O tratamento recebido pelo pênis, por parte da religião, da medicina, da filosofia, não é o tratamento que a vagina recebe. Pênis não aborta, não sofre episiotomia. Eu não me oponho à cirurgia de redesignação sexual. Mas um pênis modificado, virado ao contrário, inserido em um canal criado cirurgicamente, não é uma vagina. Afirmar que a medicina pode criar uma vagina a partir de um pênis é misógino. É reduzir a vagina a um canal apto a receber um pênis, reafirmando um paradigma cristão segundo o qual a anatomia feminina não tem uma existência justificada em si mesma, senão para a realização do homem enquanto tal. Afirmar que um pênis é uma vagina é perpetuar o desconhecimento feminino em relação ao próprio corpo, e portanto é um obstáculo a nossa autonomia. Negar a complexidade e a beleza do nosso corpo, em um mundo onde o pênis é exaltado, é um ato de misoginia, e portanto é um ato anti-feminista. Afirmar que um pênis pode ser uma vagina é perpetuar a onipotência do falo, em um munto onde o falo pode penetrar qualquer vagina, mesmo que a mulher se oponha a esse ato de penetração violenta.

Um pênis não é uma vagina. 

quarta-feira, 4 de março de 2015

Tutorial: como escrever um artigo científico ou trabalho acadêmico em 5 passos rápidos

Bom, este post foi muito pedido, por muita gente... a linguagem e o método acadêmicos deixam a gente meio perdida no começo, e enquanto a gente se adapta, é legal ter uma referência, um manual, alguma coisa que nos oriente... Comigo, peguei o jeito na marra mesmo. Em parte porque ser feminista na academia é bem complicado, mas em parte porque sou cabeça dura e não aceito conselho. Hoje em dia, tenho esta fórmula que funciona bem para mim. Não necessariamente funcionará para todas, mas é como eu disse: enquanto você não pegar o jeito, enquanto não desenvolver o seu método, este tutorial pode servir.

1. Faça um esboço do seu trabalho

O esboço não tem uma estrutura muito diferente das redações que você fazia na escola. A principal diferença é que (espera-se que) você vai se aprofundar mais no assunto que tratar. Eu acho esse esboço uma parte fundamental do trabalho porque, com ele, você não vai se perder. Quando a gente começa a pesquisar, é comum pipocarem várias coisas interessantes, que dão uma vontade danada de falar de tudo ao mesmo tempo: você começa com a relação dos sexos nos contos de fadas, e acaba com um tratado sobre elfos de Tolkien e os Tuatha de Danaam, O esboço fica ali pra te dar o puxão de orelha necessário, para você colocar os pés no chão.

Pode ser que você seja obrigada a se desvirtuar do seu esboço se, por exemplo, a premissa do seu trabalho se provar errada ou inconsistente. Mesmo assim, até chegar a essa conclusão, o esboço deu uma ajudinha ;)

2. Reúna o material que você pretende consultar


Com seu esboço feito, reúna o material que você pretende usar. Eu costumo recolher a maior quantidade possível, para só depois fazer uma filtragem, escolhendo o que vai ser usado de verdade.

No meu caso, como dá pra perceber (ou não) estou escrevendo algo sobre contos de fadas. Os contos de fadas são meu objeto de estudo. Contudo, as próprias coletâneas podem conter informações históricas e políticas sobre os contos, e essas informações costumam estar nos prefácios ou introduções. Quando um livro é editado, existe uma intenção mercadológica por trás disso, e existem volumes compilados e organizados pensando especialmente nas pessoas que precisam extrair daí informações "científicas". Portanto, se você estiver buscando um livro para uma pesquisa, seja lá sobre o que for, procure edições críticas, edições comentadas, dê uma boa olhada na introdução e no prefácio... Vale a pena!

3. Faça fichamentos


Aqui começa o seu trabalho braçal. Pode ser tedioso e tomar seu tempo, mas eu garanto: vale a pena. O fichamento que eu aprendi a fazer consiste em selecionar e copiar, à parte, trechos relevantes do texto que você estiver lendo. Ele é bom porque, uma vez extraída a parte útil, você pode guardar seu livro e consultar apenas o fichamento que fez. Os fichamentos ajudam a memorizar informações, ajudam na compreensão do texto. Eu, por exemplo, tenho uma ótima memória fotográfica: quando leio um excerto copiado, me lembro da página de onde eu o tirei, e de quebra me lembro de outras informações que podem ser relevantes. É por isso que não adianta tentar estudar pelo fichamento da coleguinha: porque ele sempre remete ao texto original de onde a cópia foi feita.

Como vocês podem perceber, eu sou uma pessoa dó século XX, tudo que eu faço é no papel, é na mão. Mas se vocês forem menos obsoletos do que eu, o trabalho fica mais fácil ainda: crie um documento de texto, e com a ajuda da fórmula mágica "copiar + colar", vá criando seu fichamento digital.

4. Conheça bem o seu objeto

Eu acho que li essa história umas trocentas vezes quando era criança...

Essa parte do trabalho é bem traiçoeira, caso você estude algo de que goste, ou algo muito conhecido. A tentação por escrever aquilo de que lembramos é muito grande. Não faça isso nunca na sua vida. Quando se trata de produzir material acadêmico, pesquisa, é importante dissociarmos aquilo de que lembramos do objeto que está diante de nós no presente. A memória afetiva pode deslocar informações, ampliar ou diminuir a importância de elementos do objeto pesquisado. Eu, por exemplo, sempre lia contos de fadas ansiosa pelo momento em que o dragão aparecia: o papel das princesas me era completamente irrelevante - o que não muda o fato de que eu, como qualquer menina, fui influenciada pelas princesas... O ideal é ler de novo, como se você nunca tivesse lido antes.

Uma dica: tenha uma leitura só pra você. Leia por ler, por diversão, por fruição mesmo. Goste, desgoste, tenha uma opinião. Depois, leia como pesquisadora: compare as informações adquiridas em outros lugares com o objeto que está diante de você. Permita-se duvidar de outros pesquisadores, questionar, mas lembre-se de permitir-se concordar.

5. Lembre-se do esboço

Muitas vezes, rola uma tentação de escrever como se não houvesse amanhã, e quem sabe começar um livro. Isso é ótimo se você não estiver trabalhando com prazos de entrega ou limites de páginas. Quando estiver escrevendo, volte ao esboço. Você está acrescentando informações relevantes, condizentes com seus objetivos? Eu sei o quanto dói dar canetadas naquele trabalho lindo, excluir detalhes curiosos ou até mesmo inéditos. Mas o trabalho de edição é necessário. Isso acrescenta qualidade à sua pesquisa: o detalhe que você excluir hoje pode se tornar o tema de um trabalho futuro, e você vai tempo de se dedicar somente a ele. Então, tenha calma e mantenha o foco!

Eu, que não sou boba, escrevi esse tutorial e peguei a carona pra deixar um teaser pra galera. Já que contos de fadas foram tema de bafafá no meu facebook há pouco tempo, resolvi escrever um pouco sobre o tema... mas calma lá, que ainda leva tempo.

Por hoje é só isso mesmo ;)

domingo, 1 de março de 2015

O canto da baderna - para que serve e como funciona

Quando éramos crianças, meu irmão e eu tínhamos uma brincadeira chamada O Sítio. Funcionava assim: no varandão empoeirado, jogar todos os brinquedos no chão e brincar de tudo ao mesmo tempo agora. Do carretel de madeira da vovó à Barbie, do Lego ao dinossauro, todos os tamanhos e formatos de brinquedos eram permitidos, com uma condição: nenhuma regra era permitida.

Uma foto privilegiada do nosso cantinho da baderna
Faz tempo que quero um blog para chamar de meu. Um blog sem compromisso e sem pretensão revolucionária, para falar das coisas que me agradam e interessam: rock n' roll, video game, desenho animado, literatura... e feminismo. Muita gente acha que feministas são frígidas máquinas de pensar, com nenhum outro objetivo na vida além de destruir o patriarcado... o que é quase verdade mesmo. Além da frigidez, a parte mentirosa desse raciocínio é fazer uma leitura simplista e superficial da máxima "o pessoal é político". Politizar nossos gostos, nosso cotidiano, não significa que a polícia feminista vai bater na sua porta e confiscar todos os seus livros do Harry Potter ou rasgar seu vestido favorito. Porém, quando o feminismo se torna uma prática cotidiana, o exercício político de determinadas ideias voltadas ao combate da misoginia, os nossos gostos, nossa visão de mundo, acabam abalados, se transformam drasticamente.

Para além de feminista, esse blog é radical. Acredito que a consciência humana não tenha uma vida independente da materialidade em que nossos corpos estão inseridos. Os sistemas de poder e de produção são integrados por complexos mecanismos materiais bem como discursivos, que conformam nossos desejos e interesses. Não considero que exista, por isso, uma feminista perfeita, acabada, trabalhada na desconstrução, e que jamais reproduza misoginia em sua vida. Portanto, a desconstrução é um processo contínuo, já que continuamos submersas no patriarcado, recebendo suas influências, expostas a suas violências físicas e discursivas. Por tudo isso, este blog tem, no fundo, um caráter narrativo. Ele acompanha desconstruções, problematizações, de questões que me são muito caras, que tiveram um papel formador na pessoa que eu sou. Por essa razão, principalmente, eu decidi comprar a briga de fazer um blog pessoal, autoral; eu queria estar no lugar de uma mulher que fala o que pensa, capaz de se comunicar horizontalmente com outras mulheres que falam o que pensam.

Voltando ao "pessoal é político": eu amo o pensamento feminista. Em termos de corrente, estou assentada no feminismo radical - muito bem, obrigada - mas nunca deixo de ler outras pensadoras, de outras correntes. Como menina geek-desde-criancinha (no meu tempo nós éramos chamadas de CDFs, antes de sermos atingidas pelo raio gourmetizador...), eu gosto de estudar os assuntos de que falo. Estudar mesmo, fazer fichamento, citar fontes, comprar livros sobre o assunto. Razão pela qual as postagens deste blog infelizmente serão escassas. O que estou tentando fazer aqui é materializar o resultado de cinco anos de pesquisa feminista, independente e aplicada, sobre os diversos temas que tratei na minha vida acadêmica, na minha vida pessoal e sobretudo em minha vida política.

Por hoje é só. Entrem e fiquem à vontade =)