segunda-feira, 6 de abril de 2015

Diário de uma feminista - mulher, interrompida



a beleza do mundo que logo findará,
tem dois gumes, um de riso, outro de angústia,
que cortam o coração em pedaços
- Virgínia Woolf



Na minha turma tem uma garota que acorda três e meia da manhã para ir à faculdade. Eu acordo às cinco. Sou uma privilegiada: às vezes acordo antes do despertador. Primeiro passo: alimentar os cachorros. Limpar o olho do cachorro que tem remela eterna. Segundo passo: alimentar os gatos. Dar paté ao gato que não tem mais dentes. Terceiro passo: me alimentar. Quarto: me vestir. Quinto: ganhar a rua cinco e quarenta da manhã. É noite. Existe algo de profundamente antinatural em estar na rua a essa hora, devassando a vida das estrelas que estão se retirando para dormir, descabeladas, em seus pijamas. Acordar antes do galo. Mas hoje estava chovendo, não havia estrelas para se ver.

O ônibus passa logo. Poltronas vazias me animam. Sento e saco um texto para ler. Não sei do que vai se tratar a aula de hoje, mas revejo anotações. Uma velha ideia se levanta dentro de mim: aquele texto sobre cultura nerd e The big bang theory. Trechos inteiros me vêm à memória, do jeito que eu tinha esboçado semanas atrás. Fico contente com a precisão da minha memória. O texto fotocopiado fica em meu colo, enquanto vejo as ruas passando ao meu redor, e minha mente desliza entre pensamentos, escolhendo as palavras. Esta sim, esta não. Secretamente (agora não mais) eu sou muito vaidosa com minhas ideias.

Chego à faculdade, tomo café, converso, procedimentos de praxe para que o sono não me ocorra. Tenho um sono terrível às sete da manhã. A professora, que também é pontual, chega logo, abre a sala, coloca livros sobre a mesa como quem decora um escritório fast-food. Uma performance. Logo aquela sala será de outra professora. Sento e espero o que vem a seguir. Eu sou uma aluna aplicada. Às vezes tenho vergonha, sei que nessa "sede de saber" reside uma dose inevitável de submissão, submissão necessária à sobrevivência na academia. Estou me humilhando por um diploma, de olho no mestrado. Mas é a vida. Eu quero me aposentar com pensão do governo.

A mestranda vai ligando a televisão. Vamos ver um filme. Merda. Eu sei qual é o filme. Versão cinematográfica do livro que estamos lendo, Um crime delicado. A semântica diz tudo: trata-se de um crime, algo masculino na maior parte do tempo. A outra palavra, "delicado", remete ao campo semântico da feminilidade. É um crime cometido contra a mulher, mas que não pode simplesmente ser posto desta forma. É um estupro, com certeza, eu já sabia antes de ler o livro, já que quando o assunto é estupro, tudo é assunto, menos o estupro. O livro, narrado em primeira pessoa, é aquela história que toda feminista conhece, do cara que tenta negar o estupro afirmando ser humano. E, como estupros são cometidos por monstros, ele obviamente não pode ter feito tal coisa. Ainda mais ele, um erudito crítico de teatro. No que consiste sua autodefesa: em dar mostras de sua incrível erudição, na demonstração de uma sensibilidade notável.

Já dizia Andrea Dworkin: os artistas ouvem o vento murmurar e o mar chorar, mas para eles as mulheres são mudas. Janice Raymond, outra feminista, dirá também que Foucault, guru da pós-modernidade, vê nas rupturas da história seu potencial revolucionário. Isso é, sem dúvida, ignorar que a história das mulheres (ou antes, as histórias) têm uma única coisa de contínua: a de sermos caladas e interrompidas. O estupro é uma interrupção na vida da mulher. Mas para o artista, ele é a tela em branco na qual se desenrola o drama da consciência. Assim como Foucault vê em Sade o ícone por excelência da transgressão, Sérgio Sant'Anna usa a trangressão da dignidade feminina, o estupro, como um campo fértil para a literatura pós-moderna, que usa a violência como pano de fundo para que A Literatura se desenrole sobre si própria, num jogo de espelhos metalinguísticos que não tem fim. A modernidade abalou as dicotomias forma e conteúdo, ritmo e melodia, figura e fundo com suas estratégias pictóricas adotadas mais tarde pela literatura. A pós-modernidade retoma as dicotomias, invertendo-as: o enredo é o pretexto da forma. A violência contra a mulher não é o assunto do enredo, mas o triste pano de fundo para que o verdadeiro enredo, os debates internos do Eu masculino, possam acontecer.

E, é claro, vai haver a cena do estupro. Não são oito da manhã e eu já me deparo com uma mulher estuprada. Todo o texto que eu imaginara antes me escapa. É instantâneo. O diretor do filme tem a decência de, ao contrário do autor do livro, não deixar dúvidas quanto à violência que ali aconteceu. Aconteceu. Por outro lado, Inês, a mulher estuprada, é rica e detalhadamente representada em sua relação com um homem muito mais velho que a usa como modelo para suas pinturas. Inês, que no livro manca, tem apenas uma perna no filme. E por isso procura se afirmar através de sua sexualidade, tornando-se uma mulher lasciva, que compensa sua "deficiência" provocando homens e levando-os à loucura na cama. Como pontua Andrea Dworkin, esse é um pensamento profundamente pornográfico: o de que o poder feminino consiste em seu potencial de extrair o precioso esperma de um homem. Inês, uma mulher linda e jovem, porém com uma auto-estima danificada, reafirma-se tornando-se a musa desse pintor que a desnuda e, por minutos e mais minutos, coloca-a em elaboradas posições, desconfortáveis, pintando-a. Roubando-lhe a imagem, expondo sua nudez e tornando-a a anônima, é assim que um pintor "exalta" uma mulher. E o final do processo é amplamente romantizado: ao ver-se nua, pintada em uma tela onde se vê um grosso e enorme pênis na iminência de penetrá-la, ela cria coragem para aceitar-se tal qual é, abandonando a perna postiça.

Trata-se de uma manobra inteligente do diretor: salvaguardar a pornografia, diferindo-a do horrendo, do estupro. O "crime delicado", que no livro é o estupro, torna-se o "crime invisível", que no filme é a pornografia.

Mas aquele texto que eu tinha imaginado, tão feliz às cinco e cinquenta da manhã de segunda-feira, esse está perdido. O patriarcado vence. Mulher, interrompida.

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