terça-feira, 16 de junho de 2015

O corpo como metáfora

Não sou fã do Aristóteles, mas a definição aristotélica de metáfora pode ser um bom ponto de partida para a reflexão. Metáfora é uma coisa no lugar de outra. Simples assim.

No cotidiano, o que as metáforas fazem é encurtar o caminho do pensamento e da comunicação. No post passado, dei o exemplo do "quadro de cabeça para baixo". Ninguém vai abrir parênteses e explicar que na realidade o quadro não tem cabeça, trata-se apenas de uma expressão para dizer que está invertido, etc... Todo mundo sabe a diferença entre um ser humano e uma pintura a óleo.

O corpo está na base de muitas metáforas do nosso dia-a-dia, e tem em relação às metáforas uma anterioridade histórica. Tínhamos cabeças antes de ter a linguagem e as metáforas. Dessa forma, não é "a cabeça que está em cima", é o "em cima" que está na cabeça.

Contudo, muitas metáforas partem não propriamente do corpo, mas da percepção cultural que temos do corpo. O cérebro, como hoje sabemos, é um órgão vital, como o coração. Ou o fígado, e os rins. Porém, numa sociedade que hierarquiza mente e corpo, o cérebro é concebido como o mestre dos demais órgãos e partes. Fala-se em testa de ferro, ou cabeça de uma organização criminosa já partindo do princípio de que o cérebro domina, em um sentido hierárquico, que projeta no corpo, e portanto naturaliza, as relações de poder da sociedade.

A filosofia política tem lançado mão do corpo como metáfora para relação de poder já há muitos séculos. A figura do leviatã de Hobbes, em que a cabeça é a pessoa do líder, é bastante difundida e de fácil reconhecimento. Dessa forma, as metáforas sobre o corpo nos dão dois tipos de informação distintas e complementares: 1) o que pensamos do corpo e 2) o que pensamos daquilo que fazemos, metaforicamente, corresponder ao corpo.

Continuo com Sontag: acho que certas coisas não devem ser transformadas em metáforas. Na internet é comum ler meninos dizendo que "estupraram o botão do replay", e tendo em vista o que é um estupro, não acho que ele seja uma metáfora válida para nada. NADA. Exatamente por isso essa metáfora me interessa. Me interessa saber o que se pensa do estupro e de que maneira esse gesto corresponde ao estupro, na cabeça (de cima ou de baixo?) de quem elaborou a metáfora. Me interessa saber por que chamamos a política brasileira de pornográfica: o que pensamos da política brasileira e o que pensamos da pornografia.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Pornografia como metáfora - singela homenagem a Susan Sontag

Um debate recorrente para quem faz Letras é a possibilidade (ou não) de uma comunicação que não se valha da metáfora. Digamos que você veja um quadro invertido na parede: você provavelmente tentará comunicar a alguém que ele está de cabeça para baixo. Não ocorrerá a ninguém que você esteja mentindo, afirmando que a pintura possui cabeça - digamos que o quadro retrate um lindo jarro de flores. Ou então, alguém pergunta "onde você está, naquele livro que está lendo". A palavra "onde" designa lugar, e o livro é um objeto. Mas, se queremos saber qual é a porção já lida daquele livro, por quais eventos literários nosso interlocutor já passou, o uso de "onde" deixa de ser inadequado, atende a uma necessidade de comunicação.

Em A aids e suas metáforas, Sontag explora os usos que diversas doenças tiveram ao ser transformadas em metáfora: a peste e a sífilis como punição do sujeito sexualmente transgressor, o câncer como uma punição diluída e generalizada a uma civilização caótica, desgovernada, desumana e cruel. Especialmente no caso do câncer, doença que afetou a autora e acabou por levá-la à morte, Sontag relata que diversos pacientes incorporavam o imaginário criado por essas metáforas como uma espécie de sentença. Explico: o câncer havia se tornado uma metáfora para a crise, ou para a morte. Chamava-se inflação de câncer econômico, poluição de câncer do planeta, e no interessante (e terrível) caso de uma doença que metaforiza outra, a aids terminou por ser o câncer gay. Sua conclusão, resumidamente, é que algumas coisas não deveriam se tornar metáforas, pois isso inviabiliza uma análise profunda dos problemas que as originam.

Agora vamos falar de pornografia.

Pelo menos desde a feminista Camille Paglia, na década de 1990, a pornografia tem sido encarada como a evidência do sucesso do projeto de liberdade sexual, empreendida pelos jovens de 1960 e 1970. A pornografia, tomada como uma exposição do real do sexo, seria a democratização das imagens e dos saberes de si das mulheres, sobre seus corpos, sobre o exercício do prazer e de suas identidades. Paglia elege Madonna como um ícone desse projeto, em contraposição a Meg Ryan, que seria o ícone da "boa moça", heroína certinha e recatada, um verdadeiro fóssil de um ideal de ternura e pureza dos anos 1950. Essa interpretação de pornografia como vitória também se verifica na teoria queer, embora esta não se aventure a dizer que a pornografia é o sexo, bem como não afirma que exista um Sexo a priori, anterior à cultura e às relações de poder. E, tendo em vista que a teoria queer considera o sexo como um construto que não é alheio às relações de poder que conformam nossa sociedade, a defesa da (pós) pornografia por parte dessa teoria é no mínimo desconcertante.

Desde que me meti a estudar pornografia, a coisa mais difícil é encontrar uma definição, qualquer que seja, do que é pornografia. Seja daqueles que a promovem, seja daquelas que a combatem, o termo surge como um significado social amplamente difundido, que prescinde de maiores explicações. A pornografia é. E, como sempre acontece a quem se dedica a um determinado tipo de estudo, a delimitação dessa quimera chamada objeto é muito complicada. Portanto, hoje, eu não gostaria de falar da pornografia, mas da pornografia como metáfora que, volta e meia, surge na filosofia, nos estudos literários, e na literatura mesma. E queria falar também de quão contraditório é o uso metafórico que se faz da pornografia em relação à promoção da mesma como algo empoderador.

O filósofo Slavoj Zizek, ao formular seu conceito de "paixão pelo Real", elenca a pornografia como um exemplo flagrante de que a sociedade anseia por transpor a miríade de representações midiáticas cercam o sexo, o desejo de apreendê-lo em sua "coisa em si". Slavoj ancora boa parte dessa reflexão em Bataille, o cara que formulou a sentença de que o orgasmo é uma pequena morte. Sexo e destruição, para Zizek, não estão contrapostos, e ele reafirma tal ideia ao citar O império dos sentidos como uma outra evidência desse desejo de apreender o sexo em sua realidade material. Por um lado, o autor é bem certeiro em captar esse aspecto do discurso pornográfico, que diz "eu tenho a verdade sobre o sexo". Por outro, ao não questionar as relações de poder implicadas especialmente na pornografia audiovisual que analisa, transforma a violência sexual numa parte inextricável do próprio sexo, não abrindo margem para pensar por que, afinal, é a pornografia, e não a biologia, a sociologia, a antropologia, ou qualquer outro discurso, aquele sancionado para falar no assunto.

Explicando mais sucintamente: na verdade, o interesse de Zizek na pornografia é muito mais metafórico do que filosófico.

Prossigamos. O segundo exemplo diz respeito à minha área de interesse e pesquisa, o crítico (?) Karl Erik Schollhammer. Em  Ficção brasileira contemporânea, Schollhammer tenta traçar um panorama de tendências literárias contemporâneas no Brasil, observando (entre outros fatores) um retorno circular à violência urbana. A crueldade é um termo operacional para sua análise, embora seja um tanto vago, aludindo a uma suposta "crueza humana" - o que, portanto, desloca e esfumaça as diversas violências urbanas, bloqueando qualquer estudo que procure rastrear suas causas. A pornografia aparece no romance contemporâneo brasileiro na qualidade de pastiche de um gênero menor, que ambiciona efeitos estéticos. Não fica claro se por "pornografia" o autor designa cenas de sexo explícito ou recursos estéticos da pornografia audiovisual incorporados à literatura na qualidade de experimentação. O que me interessa é uma espécie de ato falho, na qual o autor acusa o filme Homem do ano de "superexposição pornográfica da violência dos fatos". Nesse trecho, a pornografia aparece adjetivando, aprofundando, tanto a superexposição quanto a violência. Novamente, é possível questionar: o sexo é, afinal, violência per se, ou a pornografia é o olhar excessivo sobre um sexo violento?

Meu terceiro e último exemplo também diz respeito à minha atual pesquisa (por enquanto informal...). Trata-se do conto "Intestino grosso", de Rubem Fonseca, escrito em 1975. Trata-se de um conto que beira o manifesto, podendo ser lido como a ironia de um escritor/narrador que caga para leitores e críticas, ou como um lance de dados que ao mesmo tempo prevê os rumos da literatura brasileira e conclama outros artistas a seguir sua vereda. Seja como for, já pressentindo os meios de comunicação de massa como uma competição, o narrador/escritor oferece aos leitores uma espécie de antídoto, uma pílula vermelha contra a matrix das novelas folhetinescas e adocicadas: a pornografia como terapia de choque que é, ao mesmo tempo, catártica - aliás, numa pegada bem reichiana. Ao longo do conto, que descreve a relação de um escritor e um repórter, é este quem traz a pornografia à baila diversas vezes, obtendo respostas sempre evasivas do outro. Por um lado, o escritor afirma que a pornografia é a alternativa à bomba (coisa que Reich chega a dizer textualmente, se não estou enganada), sendo portanto uma via de exercício e escoamento de pulsões verdadeiras e humanas. Por outro, quando perguntando sobre o teor pornográfico de seus livros, o escritor desfere uma metáfora: "meus livros só têm gente desdentada". Quando a pornografia é aludida enquanto sexo, é boa, catártica, alternativa à alienação e à violência; todavia, quando usada para metaforizar, ela alude a um campo semântico negativo, de pobreza e privação.

De minha parte, eu ainda não tenho uma conclusão. Mas, retomando a Sontag, para quem nem tudo nessa vida deveria servir de metáfora, talvez esse seja o caso da pornografia também.

domingo, 12 de abril de 2015

Mas o que é uma nerd, afinal?

Este texto introduz uma série de reflexões sobre a situação da mulher geek/nerd perante a indústria cultural, seja na qualidade de sua representação simbólica ou de consumidora de bens culturais.

Frequentemente, pensa-se na feminista como uma mulher composta de puro pragmatismo. Na dicotomia razão/sensibilidade, ela é capaz de abraçar a primeira e recalcar a segunda. Tal pensamento é interessante por acreditar que existe algo intrinsecamente contraditório entre o que é melhor para as mulheres em um sentido político (emancipação) e seus interesses "naturais", emocionais, amorosos e sexuais. Ti-Grace, uma feminista de segunda onda, disse certa vez que, se as feministas tivessem de escolher entre o sexo e a liberdade, escolheriam essa última. Discutir a interface entre desejo e interesse, como faz Gayatri Spivak, é tentador. Mas esse não é o tópico do dia.
               
O tópico é: eu estaria mentindo ao dizer que leio teoria feminista por um interesse puramente pragmático. Não: eu gosto de ler teoria feminista. Para além de aplacar muitas angústias existenciais, eu gosto de ser desafiada intelectualmente, incomodada. Leio feministas de várias correntes, discuto com elas, escrevo réplicas, tréplicas. Traduzo textos que ninguém mandou traduzir, desconstruo argumentos que ninguém mandou desconstruir, leio livros que ninguém mandou ler. Se eu tivesse que fazer uma varredura das minhas memórias e procurar uma sensação no meu passado que fosse de alguma forma semelhante a isso, eu provavelmente diria que o prazer da tradução é muito semelhante a passar da Tubular no Super Mario World.
                  
O que é uma nerd/geek afinal? Eu diria que, primeiramente, é uma moça, geralmente jovem, que gosta de ser desafiada. Que não se contenta com o lugar alienante reservado a ela pela cultura de massa; que não se satisfaz com o material pobre e superficial a ela oferecido pelas novelas, pela literatura de folhetim, pelas princesas da Disney e pelo mundo encantado e cor de rosa da Barbie - portanto, a nerd costuma ter, mesmo que instintivamente, uma perspectiva crítica acerca dos papeis sexuais reservados às mulheres no patriarcado. Às vezes, uma nerd é até uma menina que curte tudo isso, mas que sente a necessidade de ir além. Portanto, ela também é uma pesquisadora autônoma, desprovida de método científico, alguém que fica errante entre bibliotecas, sebos e livrarias, procurando materiais que atendam a seus interesses.
                   
 Todavia, os sistemas de produção e recepção de arte e cultura estão, hoje em dia, mediados pelo capitalismo (daí o termo mídia), resultando naquilo que alguns teóricos acabaram por chamar de indústria cultural. O complexo editorial, as grandes empresas de games, os grandes selos de HQs esvaziam, de maneira geral, os bens culturais de sua aura, isto é, de sua autenticidade, da sua exclusividade, de sua individualidade. Embora HQs antigas e discos de vinil sejam ainda objetos de culto, a verdade é que, em uma produção massiva de bens culturais, são pouquíssimos aqueles que se salvam. E mesmo aqueles que parecem sobreviver ao tempo foram criados por empresas, através de pesquisas de mercado exaustivas, e profissionais tecnicamente formados para desenhar ou escrever em determinados estilos um tanto quanto rígidos. Basta ver como as novelas se parecem, ou a música pop. Existe um padrão.
                  
Nesse sentido, a nerd é também uma consumidora. Diante da massificação, nós somos aquelas que procuram o produto que agregue um investimento técnico maior. Aquelas que gostam de cinema autoral, como Almodóvar e Tarantino; gostam de Super Homem, mas só quando escrito por Alan Moore; não gostam de Crepúsculo, mas conhecem a obra inteira de Anne Rice, e assim por diante. Dito de um modo menos romântico, a nerd é uma consumidora que não se pensa enquanto tal. Detendo um conhecimento de mundo vasto, mas pouco específico, nós somos aquelas pessoas que farejam mitologia nórdica em Final Fantasy, entre outras referências literárias e artísticas em geral.
                 
Essa análise está apoiada na famosa escola de Frankfurt, pensadores marxistas que procuram compreender os meios de comunicação criticamente, estudando a maneira pela qual eles estão imbricados com o capitalismo enquanto modo de produção social que gera relações de poder específicas. O recorte sexual, portanto, não está na ordem do dia. É insuficiente dizer que mulheres são consumidoras de bens culturais; na verdade, nós comparecemos no mundo da comunicação simultaneamente como consumidoras e produto. Compre esta cerveja e o estupro é por nossa conta, é o que as empresas parecem dizer. Quando estamos, então, falando de produtos culturais premium, a misoginia ganha uma roupagem especial. Uma vez que estes produtos possuem um investimento técnico e estético aparentemente maior, eles agregam um maior valor financeiro que permite às empresas abrir mão de certas fatias do mercado, e uma dessas fatias somos nós, as mulheres. Lançar mão de misoginia não é, por isso, um problema para essa galera - inclusive porque os homens continuam ganhando melhores salários, ocupando melhores empregos e melhores cargos em suas empresas. Os homens, enquanto um grupo, têm mais dinheiro; e enquanto for assim, as empresas que investem em games, HQs, literatura blockbuster, entre outros produtos culturais premium, não vão precisar se preocupar com a gente.

 A indústria cultural de produtos premium não é feita para nós e age como se simplesmente nós não existíssemos. Ou pior: tratam a gente exatamente como os produtos de massa. Compre este game e o estupro sai por nossa conta, parecem dizer alguns desenvolvedores. 

continua...

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Diário de uma feminista - mulher, interrompida



a beleza do mundo que logo findará,
tem dois gumes, um de riso, outro de angústia,
que cortam o coração em pedaços
- Virgínia Woolf



Na minha turma tem uma garota que acorda três e meia da manhã para ir à faculdade. Eu acordo às cinco. Sou uma privilegiada: às vezes acordo antes do despertador. Primeiro passo: alimentar os cachorros. Limpar o olho do cachorro que tem remela eterna. Segundo passo: alimentar os gatos. Dar paté ao gato que não tem mais dentes. Terceiro passo: me alimentar. Quarto: me vestir. Quinto: ganhar a rua cinco e quarenta da manhã. É noite. Existe algo de profundamente antinatural em estar na rua a essa hora, devassando a vida das estrelas que estão se retirando para dormir, descabeladas, em seus pijamas. Acordar antes do galo. Mas hoje estava chovendo, não havia estrelas para se ver.

O ônibus passa logo. Poltronas vazias me animam. Sento e saco um texto para ler. Não sei do que vai se tratar a aula de hoje, mas revejo anotações. Uma velha ideia se levanta dentro de mim: aquele texto sobre cultura nerd e The big bang theory. Trechos inteiros me vêm à memória, do jeito que eu tinha esboçado semanas atrás. Fico contente com a precisão da minha memória. O texto fotocopiado fica em meu colo, enquanto vejo as ruas passando ao meu redor, e minha mente desliza entre pensamentos, escolhendo as palavras. Esta sim, esta não. Secretamente (agora não mais) eu sou muito vaidosa com minhas ideias.

Chego à faculdade, tomo café, converso, procedimentos de praxe para que o sono não me ocorra. Tenho um sono terrível às sete da manhã. A professora, que também é pontual, chega logo, abre a sala, coloca livros sobre a mesa como quem decora um escritório fast-food. Uma performance. Logo aquela sala será de outra professora. Sento e espero o que vem a seguir. Eu sou uma aluna aplicada. Às vezes tenho vergonha, sei que nessa "sede de saber" reside uma dose inevitável de submissão, submissão necessária à sobrevivência na academia. Estou me humilhando por um diploma, de olho no mestrado. Mas é a vida. Eu quero me aposentar com pensão do governo.

A mestranda vai ligando a televisão. Vamos ver um filme. Merda. Eu sei qual é o filme. Versão cinematográfica do livro que estamos lendo, Um crime delicado. A semântica diz tudo: trata-se de um crime, algo masculino na maior parte do tempo. A outra palavra, "delicado", remete ao campo semântico da feminilidade. É um crime cometido contra a mulher, mas que não pode simplesmente ser posto desta forma. É um estupro, com certeza, eu já sabia antes de ler o livro, já que quando o assunto é estupro, tudo é assunto, menos o estupro. O livro, narrado em primeira pessoa, é aquela história que toda feminista conhece, do cara que tenta negar o estupro afirmando ser humano. E, como estupros são cometidos por monstros, ele obviamente não pode ter feito tal coisa. Ainda mais ele, um erudito crítico de teatro. No que consiste sua autodefesa: em dar mostras de sua incrível erudição, na demonstração de uma sensibilidade notável.

Já dizia Andrea Dworkin: os artistas ouvem o vento murmurar e o mar chorar, mas para eles as mulheres são mudas. Janice Raymond, outra feminista, dirá também que Foucault, guru da pós-modernidade, vê nas rupturas da história seu potencial revolucionário. Isso é, sem dúvida, ignorar que a história das mulheres (ou antes, as histórias) têm uma única coisa de contínua: a de sermos caladas e interrompidas. O estupro é uma interrupção na vida da mulher. Mas para o artista, ele é a tela em branco na qual se desenrola o drama da consciência. Assim como Foucault vê em Sade o ícone por excelência da transgressão, Sérgio Sant'Anna usa a trangressão da dignidade feminina, o estupro, como um campo fértil para a literatura pós-moderna, que usa a violência como pano de fundo para que A Literatura se desenrole sobre si própria, num jogo de espelhos metalinguísticos que não tem fim. A modernidade abalou as dicotomias forma e conteúdo, ritmo e melodia, figura e fundo com suas estratégias pictóricas adotadas mais tarde pela literatura. A pós-modernidade retoma as dicotomias, invertendo-as: o enredo é o pretexto da forma. A violência contra a mulher não é o assunto do enredo, mas o triste pano de fundo para que o verdadeiro enredo, os debates internos do Eu masculino, possam acontecer.

E, é claro, vai haver a cena do estupro. Não são oito da manhã e eu já me deparo com uma mulher estuprada. Todo o texto que eu imaginara antes me escapa. É instantâneo. O diretor do filme tem a decência de, ao contrário do autor do livro, não deixar dúvidas quanto à violência que ali aconteceu. Aconteceu. Por outro lado, Inês, a mulher estuprada, é rica e detalhadamente representada em sua relação com um homem muito mais velho que a usa como modelo para suas pinturas. Inês, que no livro manca, tem apenas uma perna no filme. E por isso procura se afirmar através de sua sexualidade, tornando-se uma mulher lasciva, que compensa sua "deficiência" provocando homens e levando-os à loucura na cama. Como pontua Andrea Dworkin, esse é um pensamento profundamente pornográfico: o de que o poder feminino consiste em seu potencial de extrair o precioso esperma de um homem. Inês, uma mulher linda e jovem, porém com uma auto-estima danificada, reafirma-se tornando-se a musa desse pintor que a desnuda e, por minutos e mais minutos, coloca-a em elaboradas posições, desconfortáveis, pintando-a. Roubando-lhe a imagem, expondo sua nudez e tornando-a a anônima, é assim que um pintor "exalta" uma mulher. E o final do processo é amplamente romantizado: ao ver-se nua, pintada em uma tela onde se vê um grosso e enorme pênis na iminência de penetrá-la, ela cria coragem para aceitar-se tal qual é, abandonando a perna postiça.

Trata-se de uma manobra inteligente do diretor: salvaguardar a pornografia, diferindo-a do horrendo, do estupro. O "crime delicado", que no livro é o estupro, torna-se o "crime invisível", que no filme é a pornografia.

Mas aquele texto que eu tinha imaginado, tão feliz às cinco e cinquenta da manhã de segunda-feira, esse está perdido. O patriarcado vence. Mulher, interrompida.

quarta-feira, 11 de março de 2015

Teste de Bechdel: uma metodologia feminista

Uma coisa que a gente vai notando sobre os livros feministas, com o tempo, é que muitos deles carecem de uma metodologia, uma "pegada" científica. Isto não é ruim: basicamente, os livros clássicos costumam lidar com tantas questões simultaneamente, que acabam por não se aprofundar muito em determinados temas. Vejamos o famoso Segundo Sexo de Beauvoir: o primeiro volume abrange desde a biologia até a Literatura, criticando discursos misóginos que perpassam diversas ciências e saberes: marxismo, psicanálise, literatura, entre outros. Isto, só no primeiro volume.

Por um lado, essa análise ampla e diversa tem a vantagem de nos mostrar que o pensamento masculino sobre a mulher tem algumas premissas que estão presentes em múltiplos campos do saber. Por outro, "ciências" tão díspares quanto o marxismo e a biologia são olhados sem pensar as especificidades do funcionamento de cada discurso.

Este blog, apesar de não ter um objetivo revolucionário, tem um objeto privilegiado para sua análise: a indústria cultural. Por ora, vamos tratar essa indústria como "mídia", como um enorme engenho para a fabricação de bens culturais em massa. Essa produção insere a mulher ao menos de duas maneiras: na qualidade de consumidora e na qualidade de produto. Enquanto o homem é interpelado como um sujeito que atua sobre a mercadoria, através da aquisição (compra) e através do uso, a mercadoria, quando vendida à mulher, é apresentada como algo que atuará sobre ela, fazendo dela objeto a ser utilizado, tanto pela mercadoria (que atua sobre ela, modificando-a, tornando-a apta ao olhar masculino), quanto pelos homens que consomem um determinado produto.

Eu não sou a pioneira nesse campo. Feministas que vieram antes de mim já pensaram essa questão, e formularam aparatos teóricos para abordar esses produtos midiáticos. Essas ferramentas muitas vezes estão por aí, jogadas em blogs. A partir de hoje, então, estou me comprometendo a coletar algumas dessas ferramentas, ou conceitos, articulá-las para um uso sistemático, porque aparentemente é algo que capricornianas fazem e me parece divertido.

O teste de Bechdel

Alison Bechdel é lésbica e cartunista, conhecida pelos quadrinhos Dykes to watch out for. Descobri a Bechdel por acaso quando, há algum tempo atrás, eu estava pesquisando mulheres, quadrinhos e zines. Mais tarde foi que, através do canal Feminist Frequency, fiquei sabendo que um episódio dessa trama em quadrinhos tinha se tornado uma espécie de teste para ver se um determinado filme de cinema era minimamente representativo com as mulheres.


As regrinhas são só 3, e são bem simples:

1) O filme, tem, ao menos 2 mulheres?
2) Elas falam entre si?
3) Elas falam entre si sobre um assunto que não sejam... homens?

E como são 3 regrinhas simples, nossa primeira reação é pensar "essa foi fácil, todos os filmes que vi recentemente passam no teste". Então, você procura relembrar a cena em que as personagens conversam entre si. E você se lembra que alguns desses filmes só têm UMA personagem feminina.

Então, apesar da simplicidade, o teste se mostra útil para vermos que as mulheres, na indústria cinematográfica, só estão ali no papel de enfeite. Enquanto homens são representados como seres humanos complexos, interessados em múltiplos aspectos do mundo que os cerca, a mulher tem um único interesse: tornar-se objeto de consumo ajustado ao que o olhar masculino demanda dela.

O teste e seus limites

O teste não foi pensado como uma ferramenta de pesquisa, embora eu pretenda usá-lo dessa forma. E, como foi pensado para olhar o cinema e não, digamos, um seriado, ou um livro, alguns ajustes acabam sendo necessários. Por isso, quando eu usar o teste por aqui (e eu pretendo usar muito), será utilizada uma "forma expandida".

Uma das perguntas que eu acrescendo ao teste é: essas mulheres têm nome? É muito comum, especialmente em videogames, introduzir personagens que conversam entre si sobre algum aspecto da trama, conferindo veracidade à história. E é igualmente comum que elas sejam simples pessoas anônimas, que não sejam personagens em um sentido mais profundo e completo da palavra. O apagamento dos nomes é um aspecto crucial, um procedimento padrão, da objetificação das mulheres na mídia; por isso, considero essa pergunta relevante.

No decorrer de uma série de TV, quadrinhos ou desenho animado, as mulheres provavelmente vão acabar conversando entre si sobre alguma coisa, em algum episódio. Porém, como vou comentar detalhadamente no futuro, às vezes menos de dez por cento dos episódios de uma série passam no teste. Por isso, acho importante aplicar o teste isoladamente em cada episódio, para obter um panorama mais completo.

Outra coisa que eu dispenso é a função fática da comunicação. Diálogos em que não há troca relevante de informação, que não passam de um "oi, tudo bem", não são contados por mim. Estamos buscando a representação das mulheres enquanto seres humanos, personagens que requerem o mínimo de profundidade, e não enfeites de tela.

E, por último, eu faço uma exigência caprichosa: essa conversa tem que durar mais de 30 segundos. Não é pedir demais... OU É?

Conclusão: o teste como eu aplico

Não é muito diferente do original, apenas acrescido de duas perguntas:

1) O produto em questão tem, ao menos, duas mulheres?
2) Elas têm nome?
3) Elas conversam entre si?
4) Elas conversam entre si sobre alguma coisa que não sejam homens?
5) Essa conversa tem mais de trinta segundos?

Esse teste não comprova que um determinado objeto seja feminista. Filmes como Frozen e Valente passam no teste sem dificuldades, mas dificilmente podem ser chamados de feministas. O teste de Bechdel, portanto, é uma verificação mínima sobre o respeito no trato com as mulheres, quando de sua representação midiática.

domingo, 8 de março de 2015

Vagina e patriarcado

Este texto está incompleto em muitos sentidos, uma vez que o material de consulta não está comigo - está emprestado. Então eu sei que ele vai incorrer em diversas imprecisões, e por isso quem puder contribuir corrigindo, dando uns toques, pode se sentir à vontade nos comentários.

Este é um texto sobre a vagina no patriarcado. Ele é um texto sobre a apropriação da vagina por aquilo que tem sido chamado de Patriarcado, ou de Ocidente, mas também de Capitalismo. É uma história do olhar masculino, assentado em instituições científicas e religiosas, bem como uma história de resistência das mulheres que sobreviveram e ainda sobrevivem. O recorte temporal escolhido parte da Grécia antiga, mais precisamente de Aristóteles, por dois motivos principais. O primeiro: para mim, nem as teorias de Engels/Morgan, nem a obra de Gerda Lerner, esgotam minhas dúvidas sobre o surgimento do patriarcado; são duas teorias que tomam a heterossexualidade tal como a conhecemos como uma evidência história estável e pouco questionada. Em segundo lugar, Aristóteles é um marco ocidental não só para o pensamento masculino sobre as mulheres, como também da arte, da linguagem, entre muitos outros assuntos. Assim, ele me parece um bom marcador de "pensamento ocidental/patriarcal como o conhecemos".

Aristóteles afixa um modelo de interpretação dos genitais que por muito tempo se torna um paradigma do conhecimento patriarcal, apelidado de "modelo unissexual". Para Aristóteles, o masculino e o feminino não são naturezas radicalmente diferentes, mas apenas uma natureza, que incidentalmente se desenvolve de uma maneira ou de outra. O pênis e a vagina seriam o mesmo órgão; um voltado para dentro, outro voltado para fora. A fêmea seria o macho incompleto e defeituoso; a vagina, vista como "invaginação do pênis", passa a ser uma metonímia pela qual a mulehr é entendida como "o homem ao contrário". Se o homem é razão, luz, progresso, ordem, a mulher é loucura (histeria), escuridão, retrocesso, desordem. Seguindo o pensamento de Platão, a racionalidade é marcada pela constância, pela capacidade de um indivíduo em ser igual a si mesmo em diferentes momentos da vida; o ciclo feminino, com suas oscilações, era portanto o marcador de um corpo inapto ao pensamento racional por excelência.

O paradigma cristão, embora tenha incrementado essa visão dos corpos, não operou uma mudança significativa no modelo aristotélico de interpretação. As dores do parto e da menstruação, dadas a Eva como punição pelo incidente da maçã, recaíam sobre a mulher não por sua anatomia, mas pela punição história ao gênero feminino. Os cristãos continuaram estudando o corpo feminino pelo prisma quebrado de sua própria moralidade, e na busca de entender os desígnios de deus sobre a mulher, faziam-no a partir do contraste aparente entre o corpo feminino e o masculino. Se as mulheres eram "mais moles", menores, e de ossos arredondados, pensava-se que a "fragilidade" de sua anatomia atestava o destino de ser governada pelo homem - tal como diziam as escrituras.

Ao passo que se "produzia conhecimento" sobre o corpo feminino, a verdade é que as mulheres dispunham de um vasto conhecimento sobre si próprias. Esse conhecimento, até a unificação dos estados nacionais, era restrito às elites econômicas, enquanto mulheres camponesas ou profissionais liberais assentadas nas cidades dispunham de conhecimentos milenares sobre alimentação, ervas e chás, parto, gestação, menopausa... Silvia Federici, em Caliban and the Witch, sublinha a importância da caça às bruxas para a unificação dos Estados Patriarcais. Para a autora, a necessidade de uma demografia controlada voltada para o trabalho, de um Estado na gerência plena das funções econômicas, requeria um controle mais preciso do corpo feminino, sendo este uma "peça" fundamental da reprodução da mão-de-obra. Ao contrário do que está consagrado no imaginário popular, a "caça às bruxas", que tem de fato suas raízes no catolicismo, é um advento altamente Moderno, que rapidamente foi adotado e encorajado pelos Estados, e segundo Laura de Mello e Souza, foi muito mais ardente entre as recém surgidas igrejas protestantes.

Mary Del Priore, em "Magia e colônia: o corpo feminino", afirma que nas colônias esse paradigma era ainda mais frouxo. Havia grande escassez de médicos enviados pela coroa, e a Igreja fazia "vista grossa" às curandeiras e parteiras, vistas como um "risco menor" à empresa colonial. Enquanto isso, em Portugal, as escolas de medicina eram largamente tuteladas pela Igreja, sendo expoentes do pensamento escolástico. Tal pensamento, concebendo a mulher apenas como veículo da reprodução do Homem, tinha grande interesse em compreender o funcionamento do aparelho reprodutor feminino, mais especificamente do útero ou madre; mais uma vez, o aparelho reprodutor é metonímia do corpo e da alma; uma mulher que não se engajasse na reprodução estaria sujeita à melancolia, à ninfomania. A menstruação era concebida como o descarte do excesso de sangue na mulher. Os vapores exalados pelo sangue menstrual eram vistos como tóxicos, e provocadores de alucinações. Assim, a "cura" era o homem: a mulher deveria estar permanentemente grávida, segundo o papel que lhe reservara o Bom Deus, evitando os males da ninfomania, do útero errante, da melancolia, entre outros.

Com o advento do microscópio, a medicina patriarcal descobre que os testículos femininos produzem um tipo de organismo (sic) diferente dos testículos masculinos, donde o modelo unissexual entra em declínio. Porém, uma vez a serviço do patriarcado, isso não foi suficiente para que o corpo feminino, em especial o aparelho reprodutor, passasse a ser estudado com o devido respeito ou cuidado, e muito menos serviu para que conhecimentos tradicionais pagãos, ou no caso colonial conhecimentos indígenas e oriundos de África, fossem resgatados como fonte de consulta e conhecimento. Pelo contrário, o modelo bi-sexual inaugura uma era de fêmeas perigosas e desconhecidas: uma vez que o conhecimento produzido até então era inaproveitável, a mulher passava a ser uma natureza completamente nova, continente desconhecido, que se por um lado é detentora de uma sexualidade que não diz respeito apenas à reprodução, tem de ser controlada sob o risco de arruinar toda a ordem-e-progresso da sociedade burguesa que procurava se estruturar.

Essa troca de modelos de interpretação, é claro, não foi radical nem instantânea, de modo que pensadores como Rousseau, Diderot e Freud ainda persistiam no paradigma que viera anteriormente. Especialmente Freud persiste no modelo unissexual, e é altamente cristão ao afirmar que a inveja é característica fulcral da mulher. Não só isso: quando, no complexo de Édipo, a menina olha para o pênis do pai e conclui que foi castrada, imputa-se à menina a noção de um dia já ter sido um homem que foi, a posteriori, deformado ou modificado. A hipótese hidráulica do desejo, de que a repressão deste estaria no bojo da histeria, apenas faz deslocar a causa da loucura do sangue menstrual para o orgasmo (ou falta dele), mas de maneira geral, o pensamento freudiano preserva suas bases cristãs e aristotélicas.

Agora vamos falar um pouco da nossa amiga, da nossa ppk, da nossa vagina. A vagina não é um pênis ao contrário. as escolas insistem em desenhar no quadro negro (atualmente branco) uma vagina em forma de cenoura, como se fosse uma cavidade oca pronta a receber o pênis, ou mesmo como se já estivesse virtualmente penetrada. ERRADO. A vagina não é cavidade, é um canal. Como outros canais do corpo, ela é um canal virtual; quando não tem "nada" lá dentro, ela está fechadinha, suas paredes se encostam. por falar em paredes, a vagina é feita de muitos tecidos, incluindo tecidos musculares, que podem ser exercitador para que o tônus muscular se mantenha ao longo da vida. Ela tem uma lubrificação que lhe é própria, e que costuma estar em perfeita sintonia com o nosso desejo. Isso derruba a hipótese de que o corpo feminino seja um corpo cuja sexualidade gira em redor APENAS da reprodução; não basta estar fértil para ter tesão, e muito menos ovulação implica ter atração sexual por homens. Voltando à parte de "não haver nada lá dentro": ERRADO. A vagina tem o que chamamos de flora vaginal, bactérias que lhe são próprias e que não são sujeira. Pelo contrário, estão ali para manter tudo em ordem. Inclusive, se você já tomou algum antibiótico muito forte, pode ter sentido coceira na vagina, ou mesmo pode ter tido alguma secreção diferente do normal. Isso acontece porque, quando essa flora se desequilibra, pode ocorrer candidíase, cujo sintoma mais comum e aparente é o prurido, ou coceira. O útero, por sua vez,não é uma bolsa escrotal virada ao contrário. Ele tem paredes grossas, que também têm músculos, e que se incham de sangue para que a placenta possa se implantar e alimentar o bebê. Os ovários não são testículos, e as trompas não são canais deferentes (ou seja lá o que tem de supostamente análogo na anatomia masculina, desculpa mas não vou fica lendo sobre pinto, não sou obrigada).

No Patriarcado (ou ocidente, como algumas preferem) o controle das mulheres enquanto recurso na reprodução humana (que passa pela execução de trabalhos e tarefas que à primeira vista podem não se relacionar com reprodução) passa pela apropriação de seus órgãos genitais e reprodutores como um recurso à disposição dos homens e do Estado. Essa apropriação se dá, fisicamente, pelo terror generalizado ao estupro, que limita nossa mobilidade; pela apropriação médica do conhecimento sobre o nosso corpo, na medida em que, para nos conhecermos e tratarmos, temos de nos alienar na mão de um profissional que não necessariamente é mulher; pela apropriação estatal que nos impede de abortar. A alienação em relação ao conhecimento é fundamental na nossa dominação, e a imagem da vagina como "suja e fétida" faz parte dessa alienação, na medida em que, principalmente as mulheres heterossexuais, se vêem impelidas a terceirizar o trabalho de auto-conhecimento. Para além disso, aquilo que tem sido chamado de Gênero, ou o papel social-sexual reservado ao corpo possuidor de vagina, NUNCA ESTÁ DISSOCIADO de como a vagina é tratada e concebida filosoficamente, religiosamente e cientificamente. Dessa forma, embora o gênero não seja um produto natural de uma determinada anatomia, ele é uma elaboração sobre essa anatomia, e com vistas à dominação da mesma.

Historicamente, falar de vagina, gostar de vagina, ousar conhecer a vagina por outro olhar que não seja o ocidental são atos de revolta, na medida em que o controle da mulher enquanto grupo está intimamente associado ao controle de sua anatomia. Saúde da mulher é pauta feminista. Parto, aborto, menstruação, são pautas feministas. Orgasmo feminino é pauta feminista, embora o liberalismo tenha feito um estrago ao sequestrá-lo, e transformá-lo na obrigação por excelência da mulher contemporânea. Falar que tais preocupações históricas tão caras a nós são "mero bucetismo" é uma nova forma de ataque às mulheres. As mulheres continuam engolindo pílulas desnecessárias produzidas pela indústria farmacêutica patriarcal; se antes nos  tratavam com eletrochoque, hoje em dia o eletrochoque vem em uma cartelinha, e as mulheres tomam uma pequena dose dele por dia. Se ates nossa loucura era tratada com histerectomia (remover o útero), hoje se trata com labioplastia (cirurgia cosmética para "corrigir" lábios vaginais supostamente grandes). Para quem acha que mutilação genital feminina só acontece em "países não civilizados", garotinhas que nascem com clitóris avantajado são operadas ainda bebês, pois os médicos dizem que um clitóris grandes pode deixar os futuros parceiros sexuais intimidados. E nem vou entrar no mérito das episiotomias, dos abortos clandestinos, da violência obstétrica. Violências misóginas que são feitas sobre nossas anatomias, através das nossas anatomias.

Mas aqui vai o parágrafo que vai mudar minha vida. Mas um pênis é um pênis. Anatomicamente, um pênis não é uma vagina. Historicamente, um pênis não é uma vagina. O tratamento recebido pelo pênis, por parte da religião, da medicina, da filosofia, não é o tratamento que a vagina recebe. Pênis não aborta, não sofre episiotomia. Eu não me oponho à cirurgia de redesignação sexual. Mas um pênis modificado, virado ao contrário, inserido em um canal criado cirurgicamente, não é uma vagina. Afirmar que a medicina pode criar uma vagina a partir de um pênis é misógino. É reduzir a vagina a um canal apto a receber um pênis, reafirmando um paradigma cristão segundo o qual a anatomia feminina não tem uma existência justificada em si mesma, senão para a realização do homem enquanto tal. Afirmar que um pênis é uma vagina é perpetuar o desconhecimento feminino em relação ao próprio corpo, e portanto é um obstáculo a nossa autonomia. Negar a complexidade e a beleza do nosso corpo, em um mundo onde o pênis é exaltado, é um ato de misoginia, e portanto é um ato anti-feminista. Afirmar que um pênis pode ser uma vagina é perpetuar a onipotência do falo, em um munto onde o falo pode penetrar qualquer vagina, mesmo que a mulher se oponha a esse ato de penetração violenta.

Um pênis não é uma vagina. 

quarta-feira, 4 de março de 2015

Tutorial: como escrever um artigo científico ou trabalho acadêmico em 5 passos rápidos

Bom, este post foi muito pedido, por muita gente... a linguagem e o método acadêmicos deixam a gente meio perdida no começo, e enquanto a gente se adapta, é legal ter uma referência, um manual, alguma coisa que nos oriente... Comigo, peguei o jeito na marra mesmo. Em parte porque ser feminista na academia é bem complicado, mas em parte porque sou cabeça dura e não aceito conselho. Hoje em dia, tenho esta fórmula que funciona bem para mim. Não necessariamente funcionará para todas, mas é como eu disse: enquanto você não pegar o jeito, enquanto não desenvolver o seu método, este tutorial pode servir.

1. Faça um esboço do seu trabalho

O esboço não tem uma estrutura muito diferente das redações que você fazia na escola. A principal diferença é que (espera-se que) você vai se aprofundar mais no assunto que tratar. Eu acho esse esboço uma parte fundamental do trabalho porque, com ele, você não vai se perder. Quando a gente começa a pesquisar, é comum pipocarem várias coisas interessantes, que dão uma vontade danada de falar de tudo ao mesmo tempo: você começa com a relação dos sexos nos contos de fadas, e acaba com um tratado sobre elfos de Tolkien e os Tuatha de Danaam, O esboço fica ali pra te dar o puxão de orelha necessário, para você colocar os pés no chão.

Pode ser que você seja obrigada a se desvirtuar do seu esboço se, por exemplo, a premissa do seu trabalho se provar errada ou inconsistente. Mesmo assim, até chegar a essa conclusão, o esboço deu uma ajudinha ;)

2. Reúna o material que você pretende consultar


Com seu esboço feito, reúna o material que você pretende usar. Eu costumo recolher a maior quantidade possível, para só depois fazer uma filtragem, escolhendo o que vai ser usado de verdade.

No meu caso, como dá pra perceber (ou não) estou escrevendo algo sobre contos de fadas. Os contos de fadas são meu objeto de estudo. Contudo, as próprias coletâneas podem conter informações históricas e políticas sobre os contos, e essas informações costumam estar nos prefácios ou introduções. Quando um livro é editado, existe uma intenção mercadológica por trás disso, e existem volumes compilados e organizados pensando especialmente nas pessoas que precisam extrair daí informações "científicas". Portanto, se você estiver buscando um livro para uma pesquisa, seja lá sobre o que for, procure edições críticas, edições comentadas, dê uma boa olhada na introdução e no prefácio... Vale a pena!

3. Faça fichamentos


Aqui começa o seu trabalho braçal. Pode ser tedioso e tomar seu tempo, mas eu garanto: vale a pena. O fichamento que eu aprendi a fazer consiste em selecionar e copiar, à parte, trechos relevantes do texto que você estiver lendo. Ele é bom porque, uma vez extraída a parte útil, você pode guardar seu livro e consultar apenas o fichamento que fez. Os fichamentos ajudam a memorizar informações, ajudam na compreensão do texto. Eu, por exemplo, tenho uma ótima memória fotográfica: quando leio um excerto copiado, me lembro da página de onde eu o tirei, e de quebra me lembro de outras informações que podem ser relevantes. É por isso que não adianta tentar estudar pelo fichamento da coleguinha: porque ele sempre remete ao texto original de onde a cópia foi feita.

Como vocês podem perceber, eu sou uma pessoa dó século XX, tudo que eu faço é no papel, é na mão. Mas se vocês forem menos obsoletos do que eu, o trabalho fica mais fácil ainda: crie um documento de texto, e com a ajuda da fórmula mágica "copiar + colar", vá criando seu fichamento digital.

4. Conheça bem o seu objeto

Eu acho que li essa história umas trocentas vezes quando era criança...

Essa parte do trabalho é bem traiçoeira, caso você estude algo de que goste, ou algo muito conhecido. A tentação por escrever aquilo de que lembramos é muito grande. Não faça isso nunca na sua vida. Quando se trata de produzir material acadêmico, pesquisa, é importante dissociarmos aquilo de que lembramos do objeto que está diante de nós no presente. A memória afetiva pode deslocar informações, ampliar ou diminuir a importância de elementos do objeto pesquisado. Eu, por exemplo, sempre lia contos de fadas ansiosa pelo momento em que o dragão aparecia: o papel das princesas me era completamente irrelevante - o que não muda o fato de que eu, como qualquer menina, fui influenciada pelas princesas... O ideal é ler de novo, como se você nunca tivesse lido antes.

Uma dica: tenha uma leitura só pra você. Leia por ler, por diversão, por fruição mesmo. Goste, desgoste, tenha uma opinião. Depois, leia como pesquisadora: compare as informações adquiridas em outros lugares com o objeto que está diante de você. Permita-se duvidar de outros pesquisadores, questionar, mas lembre-se de permitir-se concordar.

5. Lembre-se do esboço

Muitas vezes, rola uma tentação de escrever como se não houvesse amanhã, e quem sabe começar um livro. Isso é ótimo se você não estiver trabalhando com prazos de entrega ou limites de páginas. Quando estiver escrevendo, volte ao esboço. Você está acrescentando informações relevantes, condizentes com seus objetivos? Eu sei o quanto dói dar canetadas naquele trabalho lindo, excluir detalhes curiosos ou até mesmo inéditos. Mas o trabalho de edição é necessário. Isso acrescenta qualidade à sua pesquisa: o detalhe que você excluir hoje pode se tornar o tema de um trabalho futuro, e você vai tempo de se dedicar somente a ele. Então, tenha calma e mantenha o foco!

Eu, que não sou boba, escrevi esse tutorial e peguei a carona pra deixar um teaser pra galera. Já que contos de fadas foram tema de bafafá no meu facebook há pouco tempo, resolvi escrever um pouco sobre o tema... mas calma lá, que ainda leva tempo.

Por hoje é só isso mesmo ;)